quinta-feira, 24 de maio de 2012

O dano ecológico e o seu regime jurídico: A Directiva 2004/35/CE e o DL 147/2008



Universidade de Lisboa
Faculdade de Direito

Direito do Ambiente
2011/2012
Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva

O DANO ECOLÓGICO E O SEU REGIME JURÍDICO: A DIRECTIVA 2004/35/CE E O DL 147/2008




Maria Margarida Pereira
Indice
1.      Introdução ------------------------------------------------------------       3
2.      A Directiva 2004/35/CE --------------------------------------------       5
3.      O Decreto-Lei 147/2008 -------------------------------------------        8
4.      Conclusão ------------------------------------------------------------      11
5.      Bibliografia ----------------------------------------------------------     12



Introdução
O fundamento da existência do instituto da responsabilidade por dano ecológico é o de ressarciar a geração presente pela degradação do estado de um determinado componente ambiental e, outrossim, proporcionar às gerações vindouras idêntico grau de fruição desse componente, repondo, sempre que possível, o estado anterior à ocorrência do facto lesivo. Com efeito, o facto de o Homem ser um ser mortal, fá-lo muitas vezes sacrificar o ambiente, ignorando os efeitos dos danos ambientais que provoca em detrimento do seu conforto ou do lucro que visa obter.
Assim, as instituições da Comunidade Europeia, levando a sério a prossecução da política ambiental comunitária, tomaram a dianteira do processo de elaboração de um quadro normativo inovador de regulação da prevenção e reparação do dano ecológico através da Directiva 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril. Esta directiva, cujo prazo de transposição expirou em Abril de 2007, foi transposta para o nosso ordenamento através do DL 147/2008, de 29 de Julho (adiante designado RRPDE).
Note-se que até ao surgimento do RRPDE o ordenamento jurídico português não autonomizava o dano ecológico do dano ambiental (atente-se, nomeadamente, na Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril)). Tal falha é, de resto, expressamente assumida pelo legislador, no Preâmbulo do diploma:

"Durante muitos anos a problemática da responsabilidade ambiental foi considerada na perspectiva do dano causado às pessoas e às coisas. O problema central consistia na reparação dos danos subsequentes às perturbações ambientais — ou seja, dos danos sofridos por determinada pessoa nos seus bens jurídicos da personalidade ou nos seus bens patrimoniais como consequência da contaminação do ambiente.
Com o tempo, todavia, a progressiva consolidação do Estado de direito ambiental determinou a autonomização de um novo conceito de danos causados à natureza em si, ao património natural e aos fundamentos naturais da vida. (...) Assim, existe dano ecológico quando um bem jurídico ecológico é perturbado, ou quando um determinado estado-dever de um componente do ambiente é alterado negativamente".
Assim, com o RRPDE afirmou-se, enfim, a diferença entre dano pessoal/patrimonial (dano ambiental strictu sensu) e dano ecológico. Mas não só. Clarificou-se igualmente a legitimidade para reclamar a sua reparação, fixaram-se os critérios de avaliação do dano e indicaram-se as formas da sua reparação.
Deste modo, procurar-se-à, na breve exposição que se segue, apresentar de forma sucinta (assim o exigem as ciscunstâncias em que o mesmo se desenvolve, não me imiscuindo, no entanto, de futuramente desenvolver o tema, já que muito mais haveria a acrescentar, tendo já, nessa altura, em conta os muitos desenvolvimentos que certamente se seguirão após a escrita deste paper) o regime estabelecido pelo RRPDE. Para tal começar-se-à, no entanto, por analisar a Directiva 2004/35/CE que esteve na génese do mesmo e cujas directrizes apontadas coincidem, em grande parte, com as adoptadas pelo legislador nacional pelo que nos centraremos, após a análise da Directiva, a identificar apenas algumas das inovações preconizadas pelo legislador nacional.  


A Directiva 2004/35/CE
O objecto da Directiva 2004/35/CE é, desde logo, estabelecido no seu artigo 1.º “A presente directiva tem por objectivo estabelecer um quadro de responsabilidade ambiental baseado no princípio do "poluidor-pagador", para prevenir e reparar danos ambientais.”. Ressalta, ab initio, que o intuito comunitário com a Directiva foi o de instituir uma disciplina comum relativa ao dano ecológico, com o objectivo de obter resultados a custos racionais para a sociedade. Assim, subjacente a este objectivo, pretende-se incitar os promotores a evitarem os danos. De facto, em regra, as despesas para a prevenção permitem evitar ou reduzir a possibilidade de que se produzam danos cujos custos de reparação seriam superior às despesas em prevenção dos mesmo. Consequentemente, os sujeitos potencialmente responsáveis são encorajados a investirem na prevenção em vez de suportarem os custos elevados da reparação. Não obstante, caso não o façam, serão responsabilizados para reparar os mesmos com respeito pelo princípio do “poluidor-pagador”.
Já no que concerne ao âmbito de aplicação material da Directiva, o mesmo é circunscrito aos danos às espécies e habitats naturais protegidos ao abrigo do regime da Rede Natura 2000 (ou seja, qualquer dano que produza efeitos negativos significativos sobre o atingimento ou a manutenção de um estado de conservação favorável a tais espécies e habitats), às águas indicadas na Directiva 2000/60/CE e ao solo (o dano é aqui limitado às contaminações que comportem um risco significativo sobre a saúde humana conforme se retira do artigo 11º/e) iii) e Anexo III, ponto 2, não se tratando assim de um verdadeiro dano ecológico, mas antes de um dano ambiental strictu sensu). Note-se, no entanto, que a Directiva deixa aos Estados a decisão de poderem alargar o âmbito do dano ecológico a outros componentes ambientais.
Acresce que na Directiva o dano deve apresentar algumas características genéricas, ou seja, ser concreto, qualificável e significativo.
Prevê igualmente a Directiva uma “protecção antecipada” face a uma ameaça iminente, ou seja, em virtude de um perigo actual e concreto de ocorrência de um dano futuro (veja-se o seu artigo 5.º).
A Directiva aplica-se a dois tipos de actividades profissionais, as elencadas no Anexo III (tratam-se de doze actividades económicas consideradas de risco intrinseco ao desenvolvimento das mesmas e já disciplinadas noutras Directivas especiais) e, a todas as actividades não elencadas no Anexo III em que se cause um dano ou ameaça às espécies e habitats protegidos com culpa ou negligência. Com efeito, a Directiva estatui expressamente no seu artigo 3.º, al. d), que a responsabilidade tem natureza subjectiva (depende de culpa ou dolo do agente) para as actividades não elencadas no Anexo III pelo que, implicitamente, se pode retirar que está prevista responsabilidade objectiva para as actividades elencadas no Anexo III (com consequente inversão do ónus da prova).
A Directiva preocupou-se ainda em prever os casos de exclusão obrigatória da responsabilidade. Os mesmo estão previstos no artigo 4.º, no artigo 8.º, n.º 3, als. a) e b) e no artigo 17.º. Acresce que existem também casos de exclusão facultativa da responsabilidade, ou seja, permite-se que os Estados-membros excluam, total ou parcialmente, a responsabilidade do operador quando não tenha havido culpa do operador e a actividade foi validamente autorizada; quando não tenha havido culpa do operador e os danos se filiam em riscos imprevisíveis; quando o custo da adopção de medidas complementares tomadas para atingir o estado inicial ou um nível similar for desproporcionado em relação aos benefícios ambientais a obter.
A Directiva estatui que todo o custo de prevenção ou reparação do dano incide sobre o autor do dano (ressalve-se, no entanto, que a directiva autoriza os Estados-membros a dispensar o operador de custear as operações de reparação de danos ecológicos advenientes de actividade por si desenvolvida em determinados casos, e nomeadamente quando inexistir culpa daquele). Note-se que o custo compreende a lesão do ambiente, os serviços conexos e as despesas de avaliação administrativa e legais, de recolha dos dados, de controlo e de vigilância. Não obstante, em caso de existência de uma pluralidade de autores aplicam-se as normas nacionais. Realce-se que o titular do direito a reparação/prevenção é a Autoridade Pública e não os privados. Com efeito, estes últimos têm direito à saúde e ao património, não à restauração do dano ambiente.
É indubitável que o dano ambiental assume uma tripla dimensão: pessoal, social e pública. Nesse sentido, a Directiva reconhece no artigo 12.º um papel às pessoas físicas ou jurídicas e às ONG no sentido de poderem activar um procedimento administrativo perante a Autoridade, consistente num pedido de acção de reparação,  acompanhada dos dados e informações relevantes e, ainda, de intervir no procedimento desencadeado pela Autoridade por iniciativa própria. Já o artigo 13.º permite às pessoas físicas e jurídicas activarem um procedimento de recurso perante um órgão judiciário ou administrativo para controlar a legalidade processual e substantiva das decisões, dos actos ou das omissões da autoridade competente. São, não obstante, ressalvadas as disposições nacionais sobre o acesso à justiça.
Os Estados-membros deverão, segundo a Directiva (artigo 14.º), “tomar medidas destinadas a incentivar o desenvolvimento, pelos operadores económicos e financeiros devidos, de instrumentos e mercados de garantias financeiras, incluindo mecanismos financeiros em caso de insolvência, a fim de permitir que os operadores utilizem garantias financeiras para cobrir as responsabilidades que para eles decorrem da Directiva”. Reconheceu-se, deste modo, a necessidade de cobertura de riscos agravados por parte dos operadores.


O Decreto-Lei 147/2008
A transposição da Directiva para o nosso ordenamento deu-se, como se disse, através do DL 147/2008 (RRPDE). No entanto, o nosso legislador, em vez de se limitar a regular neste diploma a prevenção e reparação de dano ecológico, inclui nele um Capitulo II sob a epígrafe “Responsabilidade Civil” que se revela perfeitamente desnecessário já que vem duplicar disposições do Código Civil aplicáveis em sede de danos pessoais e patrimoniais (danos ambientais strictu sensu), desvirtuando, de certo modo, a finalidade do diploma regular tão-só a prevenção e reparação de danos ecológicos. Feita esta ressalva, passar-se-ão a referir as principais inovações presentes no diploma em relação à Directiva.
Começando pelo âmbito de aplicação material do RRPDE o nosso legislador procedeu a um alargamento do mesmo, nomeadamente no que diz respeito à protecção de espécies e habitats protegidos. Com efeito, a Directiva refere apenas como objecto de protecção as espécies e habitats protegidos ao abrigo do regime da Rede Natura 2000, enquanto que o RRPDE remete a identificação para a "legislação aplicável”, o DL 142/2008, de 24 de Julho (Regime da conservação da natureza e da biodiversidade) que alarga as áreas protegidas para além das contantes no regime da Rede Natura 2000 a outras classificadas ao abrigo de outros instrumentos internacionais assumidos pelo Estado Português .
Verifica-se igualmente um alargamento do âmbito subjectivo de aplicação. De facto, enquanto que a Directiva estatui a responsabilização, assente na culpa, de todos os sujeitos e entidades, independentemente da actividade, por danos infligidos a espécies e habitats protegidos ao abrigo do regime da Rede Natura 2000, o RRPDE acrescenta a este universo a responsabilização daqueles por quaisquer danos ecológicos, desde que compreendidos nas categorias enunciadas no artigo 11º., n.º1, al.e), ou seja, também ao solo e à água.
Como suprareferido na página seis, a directiva autoriza os Estados-membros a dispensar o operador de custear as operações de reparação de danos ecológicos advenientes de actividade por si desenvolvida em determinados casos, e nomeadamente quando inexistir culpa daquele. O legislador aproveitou esta ressalva para dois grandes grupos de casos (artigo 20º.): Responsabilidade por facto de outrem ou instrução administrativa; Responsabilidade objectiva.
No que respeita à responsabilidade por facto de outrem ou instrução administrativa, o operador deverá avançar com o montante necessário exigido pelas medidas preventivas/reparatórias disfrutando, não obstante, de direito de regresso quer contra o terceiro que provocou a ameça ou o dano quer contra a autoridade que emitiu a instrução que concorreu para a formação da ameaça ou para a verificação do dano.
Já quanto à responsabilidade objectiva (independentemente de culpa portanto) existem dois tipos de situações em que  o operador fica dispensado de custear as operações. Assim, no caso de actividades inscritas no Anexo III, o operador ficará isento de responsabilidade por danos/riscos associados ao funcionamento normal da instalação, mas já não aos adjacentes ao funcionamento anormal. Já nas actividades não inscritas no Anexo III (por conseguinte não classificadas como tipicamente perigosas) nunca há responsabilização a título objectivo. Assim, é o Estado que executa as medidas necessárias e suporta estes custos, financiando-se a partir do Fundo de Intervenção Ambiental.



Conclusão
Sem dúvida, que existirá ainda um longo caminho a percorrer no sentido da perservação do ambiente e no da execução das medidas de prevenção e  reparação dos danos que lhe forem causados.

No entanto, foram dados importantes passos legislativos para clarificar conceitos e responsabilizar quem olvida que não seremos os últimos seres humanos à face da Terra, que também os nossos filhos, netos e todas as gerações vindouras têm direito a um ambiente saudável, que a degradação ambiental que vimos observando nas últimas décadas obriga, cada vez mais, a que o crescimento económico, a mera vontade de lucro ou lazer despreocupado sejam substituídas por um desenvolvimento sustentável, respeitador do meio ambiente. De facto, já nos alertava Albert Schweitzer, respeitável Nobel da Paz em 1952, que “Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar o seu semelhante.”.

O tempo encarregar-se-à de nos permitir julgar facticamente se as opções recentemente tomadas foram as ideais ou não para a defesa do Ambiente e quais as medidas necessárias de adaptação que os novos desafios ambientais (de resto em permanente aparecimento) se imporão. No entanto, é de aplaudir a crescente consciencialização de que o Ambiente é, hodiernamente, um dos temas mais sensíveis e que se impõem medidas de preservação e defesa urgentes, preocupadas e racionais. De facto, nós, humanos, seres racionais, parecemos ter-nos esquecido, durante largos anos, que sem ambiente não haverá vida e que o facto de não sermos imortais, não nos deve fazer desprezar os nossos semelhantes e os que viverão depois de nós.

Bibliografia
GOMES, Carla Amado:
– “A responsabilidade civil por dano ecológico” in O que há de novo no Direito do Ambiente?, Actas das Jornadas de Direito do Ambiente, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 15 de Outubro de 2008, org. de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, Lisboa, 2009, pp. 235 e segs.
- “Direito Administrativo do Ambiente” in Tratado de direito administrativo especial, vol. I, Coimbra, 2009

SILVA, Vasco Pereira da
– “Ventos de mudança no Direito do Ambiente – A responsabilidade civil ambiental” in O que há de novo no Direito do Ambiente?, Actas das Jornadas de Direito do Ambiente, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 15 de Outubro de 2008, org. de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, Lisboa, 2009, pp. 9 e ss.
- Verde Cor de Direito – Lições de Direito de Ambiente, Almedina

OLIVEIRA, Ana Perestrelo de – Causalidade e Imputação na Responsabilidade Civil Ambiental, Coimbra, Almedina (2007)

SENDIM, José Cunhal – Responsabilidade civil por danos ecológicos, Coimbra, 1998

A Creeping Jurisdiction dos Tribunais Administrativos



A Creeping Jurisdiction dos Tribunais Administrativos


Por: Alexandre Antunes dos Santos


É um problema de jurisdição sobre o espaço marítimo: Creeping jurisdiction, trata-se de um fenómeno que tem vindo a dar-se desde a década de 90 do seculo XX, no âmbito do Direito Marítimo, que consiste na reivindicação unilateral de poderes de jurisdição dos Estados, para além da sua ZEE (Zona Económica Exclusiva), invocando um interesse especial na captura de espécies de peixes transzonais.
O Professor Marques Guedes atribui a este fenómeno, a causa da extinção da aplicação do Estatuto do Alto Mar às áreas que não correspondam à camada aérea e à superfície e espessura das águas delimitadas pelo plano vertical que passa pelo rebordo externo do Mar Territorial – a superfície, a espessura das águas, o leito e o subsolo sob as zonas contiguas, nas aéras das plataformas continentais, etc.
Segundo as suas palavras: “lento resvalar para a sujeição à jurisdição nacional” do alto mar, que tradicionalmente pertenceria ao Direito Internacional.
O novo artigo 4º, nº1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, doravante) pode então, representar um exemplo de alargamento do âmbito da jurisdição administrativa, em relação ao anterior artigo 4º e ao artigo 212º nº3 da Constituição da Republica Portuguesa (CRP, doravante).
O mais preocupante neste alargamento excessivo é a extensão dos poderes de julgamento dos Tribunais Administrativos a litígios que envolvam a discussão de relações jurídico-privadas. Apontando o critério da relação jurídica administrativa, no artigo 212º nº3 da CRP, como critério delimitador do âmbito da reserva de atribuições jurisdicionais, o legislador constitucional quis abranger toda a atividade de uma função estadual – a função administrativa – independentemente dos meios utilizados.
A conformidade constitucional de uma legislação processual ordinária que faça da jurisdição administrativa a comum para litígios emergentes de relações jurídico-públicas, só será possível se se verificar o fim de realização de um interesse público, constitucional e/ou legalmente reconhecido. Daí que se questiona a conformidade constitucional de algumas alíneas do novo artigo 4º nº1 do ETAF, nomeadamente quando o tribunal é chamado para apreciar questões d direito privado, sem qualquer fim público.
As entidades públicas ou as privadas associadas ao desenvolvimento de tarefas públicas também podem desenvolver acessoriamente atividades de fins privados, que naturalmente não serão incluídas no âmbito da jurisdição administrativa.
No entanto, nem todas as relações jurídico-administrativas são apreciadas pelos tribunais administrativos, excluídos por razões práticas como é o exemplo das coimas.
Podemos então concluir que o critério de relação jurídica administrativa, ao abrigo do artigo 213º nº3 da CRP, atrai à jurisdição administrativa questões que, independentemente do ramo de Direito, envolvem ação ou omissão que traduzem a prossecução de objetivos de interesse publico, constitucional e/ou legalmente enunciados e não consubstanciam formas típicas do exercício de outra função do Estado, que não a administrativa.
O sentido e alcance da alinha l) do nº1 do artigo 4º do ETAF devem ser determinados com referencia ao novo artigo 45º da Lei de Bases do Ambiente (LBA, doravante).
A competência para apreciação das ações interpostas por actores populares, na defesa de bens ambientais estava pré-condicionada pela determinação do anterior artigo 45º que reconduzia todo o contencioso ambiental, preventivo e ressarcitório, à jurisdição comum.
Com o surgimento do novo artigo 45º, aceitou-se que a proteção do ambiente se possa fazer pelas vias jurisdicionais publicas, através da remição para os conceitos distintos de atividade de gestão privada e de gestão pública, como determinantes da jurisdição competente no litígio.
A alinha b) do artigo 4º nº1 do ETAF coloca sob a alçada do tribunal administrativo um vasto conjunto de situações, sujeitas à captação pela jurisdição comum, tais como as atividades potencialmente lesivas do ambiente, desenvolvidas ao abrigo de uma autorização administrativa, cuja legalidade se contenda diretamente.
A possibilidade de cumulação de pedidos, admitida nos termos do artigo 4º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA, doravante), concorre para que a apreciação da validade da autorização deva ser feita pelos tribunais administrativos, na medida em que, nas situações em que haja danos diretamente decorrentes do exercício da atividade autorizada, cabe apurar se devem ser imputados apenas ao lesante, apenas à Administração ou a ambos.
A alinha b) do artigo 4º nº1 do ETAF, aplica-se quera autorização seja concedida a sujeitos privados, quer a sujeitos de natureza publica, cuja atividade seja potencial ou efetivamente lesiva do ambiente.
Concretiza-se a relação jurídica administrativa através do ato autorizativo e este, expressão de um dever de proteção de um bem de interesse publico, atrai todos os aspetos do litigio, excepto se a questão sub judice for independente da existência de autorização ou porque prévia ou porque alheia a esta.
Logo em regra, a existência de um ato autorizativo leva a que a resolução do litigio, seja feita pela jurisdição administrativa, ainda que a questão principal, não configure, pelo menos diretamente, uma relação jurídica administrativa – este fenómeno denomina-se atração legitima, pois potencia a celeridade e efectividade de tutela jurisdicional do autor, não prejudicando os direitos de defesa da contraparte.
A alinha l) do nº1 do artigo 4º do ETAF vem complementar a tutela ambiental já promovida pela alinha b) do mesmo numero. Apenas acrescenta a possibilidade de apreciação de questões que envolvam a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos em matéria de ambiente, quando cometidas por entidades publicassempre que desenvolvidas a descoberto de qualquer autorização administrativa.
As violações referidas podem traduzir-se quer em ações, quer em omissões.
A alínea l) parece excluir da jurisdição administrativa, as iniciativas processuais tomadas por autores com legitimidade popular (artigo 9º nº2 do CPTA), pois circunscreve-se às violações levadas a cabo por entidades públicas. Contudo, fazer prevalecer a alínea l) sobre a alínea b), nas hipóteses de sindicância de uma autorização administrativa, seria afrontar o núcleo mínimo de proteção do artigo 212º nº3 da CRP, sem quaisquer razões históricas ou praticas que justifiquem a distinção entre autores investidos em legitimidade popular e autores com legitimidade singular.
A impugnação jurisdicional de atos autorizativos titulados por privados, por sujeitos investidos em legitimidade popular, é da competência dos tribunais administrativos.
A situação excluída da jurisdição administrativa pela alínea l) é a de prevenção, cessação e reparação levada a cabo por privados que não represente o exercício de funções materialmente administrativas. Tal não significa que fiquem carentes de tutela jurisdicional, já que serão abrangidas pelos tribunais comuns. Esta situação não estaria em desconformidade com a CRP.
A atuação dos privados, por estar desconectada de qualquer tutela material administrativa, fica destituída da colaboração jurídico-pública justificativa da apreciação por parte dos tribunais administrativos.
Todas as iniciativas processuais populares, associativas e públicas dirigidas à salvaguarda de bens naturais, desenrolar-se-ão junto da jurisdição administrativa.
Concluindo, o artigo 4º do ETAF introduziu modificações substanciais no âmbito da jurisdição administrativa. Certas cláusulas devem ser ponderadas e a sua aplicação deve ser contida, nomeadamente as alíneas h) e i); outras cláusulas convidam à reformulação, como a alínea l).
A absorção de todo o contencioso ambiental é uma evolução logica e coerente do sistema. A única razão que pode impedir essa evolução pertence ao foro prático, mas perante o vasto conjunto de situações sob a égide da jurisdição administrativa (alíneas b) e l) do artigo 4º nº1 do ETAF), é difícil sustentar esse argumento.
Finalmente, a revogação substitutiva do artigo 45º da LBA e a afirmação da competência dos tribunais administrativos no que toca às ações populares (artigos 9º nº2 do CPTA e 4º nº1 alínea l) do ETAF) são um exemplo de creeping jurisdiction no domínio ambiental. Apenas se lamenta que o legislador não tenha aproveitado a oportunidade de dar ‘ainda mais largas’ à jurisdição administrativa, acolhendo as iniciativas populares dirigidas à tutela de bens de interesse coletivo, numa atitude de coerência legislativa e constitucionalmente desejável.

Bibliografia:
·         ALMEIDA, Mário Aroso de, Tutela jurisdicional em matéria ambiental, in Estudos de direito do ambiente, Porto, Coimbra Editora, 2003.
·         CALVÃO, Filipa Urbano, Direito ao ambiente e tutela processual das relações de vizinhança, in Estudos de Direito do Ambiente, Porto, UCP-Porto, 2003
·         GOMES, Carla Amado, O Artigo 4.º do ETAF: Um Exemplo de Creeping Jurisdiction?: Especial (Mas Brevíssima) Nota Sobre o Artigo 4.º/1/l) do ETAF, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Coimbra, Coimbra Editora, Set./2004
·         GUEDES, Armando Marques, Direito do Mar, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1998

Direito Sancionatório do Ambiente
A exigência de Especiais Cuidados




Daniela P. Cunha
4ºano, Subturma 2
17251


Introdução

Era da opinião geral, inicialmente, que não faria sentido existir um direito sancionatório do ambiente mas o facto dos bens ambientais começarem a ser bens protegidos na ordem fez com essas concepções mudassem.
Devem por isso ser protegidos ao mais alto nível – o nível sancionatório. Tal inicia-se no fim dos anos 70, inicio dos anos 80.
Hoje, em quase todos os países há crimes tutelados em matéria ambiental. A problemática não é facto de dever haver ou não uma tutela sancionatória mas sim se essa tutela sancionatória ambiental deve ser feita penalmente ou administrativamente.


A Tutela Penal

Vantagens de uma tutela penal
-Essencialmente, criar crimes ambientais significa dar mais dignidade à preservação do valor em questão – há quem diga que esta vantagem é, basicamente, simbólica.
-Uma maior intensidade da tutela penal
-Garantias da ordem jurídica.
Inconvenientes de uma tutela penal
-Inadequação do direito penal, que é sancionatório, para o direito ambiental, que é preventivo. No entanto, no âmbito dos fins das penas cabe a função de prevenção.
-A maior parte dos ilícitos ambientais são de pessoas colectivas e o direito penal é essencialmente vocacionado para indivíduos. No entanto hoje já admite essa condenação em situações muito limitadas.
-Com a existência de crimes ambientais há uma descaracterização do direito penal porque tem de haver uma dependência de acusação a alguém que incumpriu o direito administrativo (este é o argumento mais forte para Vasco Pereira da Silva)
-A falta de eficácia – os crimes ambientais na prática não são mesmo julgados ou quando o são as penas aplicadas são irrisórias.

Os argumentos jogam nos dois sentidos e devem ser ponderados e enquadrados.



 A tutela Contra-ordenacional
Direito ‘Penal’ Administrativo

Vantagens
-Celeridade e eficiência
-facilidade em responsabilizar indivíduos e pessoas colectivas.
-salvaguarda a autonomia do direito penal
Inconvenientes
-Diminuição das garantias de defesa do infractor. No entranto um contra-argumento a este é que mesmo o direito contra-ordenacional admite recurso a tribunais, logo só não existem estas garantias numa lógica inicial.
-O facto de haver contra-ordenações em matéria ambiental leva a  uma banalização dos delitos.
-Assenta em penas de natureza pecuniária e havendo um preço a pagar este pode ser considerado apenas um custo.


 Considerações
que advém das vantagens e desvantagens enunciadas

Em primeiro lugar podemos concluir que formas unilaterais não fazem sentido, sendo necessário arranjar sistemas de combinação adequada. Na opinião de Vasco Pereira da Silva os delitos ambientais mais graves deveriam ser tutelados penalmente e os delitos menos graves contra-ordenacionalmente.
As duas vias em termos alternativos não fazem sentido, só faz sentido uma conciliação.
Em segundo lugar, grande parte desta discussão tem a ver com a natureza das sanções, no entanto, o Professor Vasco Pereira da Silva pensa que nenhuma é adequada.
-O direito penal deveria procurar sanções alternativas. Comportamentos punitivos mas relacionados com o ambiente, como por exemplo a obrigação de reflorestação de uma área.
-O mesmo se pode dizer do direito contra-ordenacional sendo inadequado o pagamento de uma multa uma vez que pode, em vez disso compensar. As sanções acessórias, apesar do seu nome, serão então as mais importantes, como por exemplo, o encerramento de instalações.

Tudo isto conduz a que na lógica da combinação deve ser dada uma dimensão mais variável em termos das penas e as ditas acessórias devem ser as principais. Há uma autonomia, especialidade do direito do ambiente.




Realidade Portuguesa


No nosso direito penal existem crimes ambientais e além disso temos uma lei quadro das contra-ordenações ambientais, a Lei Quadro 50/2006.
Em Portugal funciona-se com uma lógica de combinação das duas dimensões.

Na dimensão Penal

Na dimensão penal Portugal foi pioneiro e o Professor Figueiredo Dias foi dos primeiros a defender. Os artigos 278º, 279º e 280º contém crimes tipificados com remissão ao direito administrativo.
Mas em que medida há uma acessoriedade administrativa ao direito do ambiente?
O desrespeito das normas de conduta administrativas é apenas um dos elementos de tipo do crime (Figueiredo Dias). Assim o crime só se verifica se todos os elementos do mesmo tiverem preenchidos e não o do desrespeito da conduta administrativa. Para Vasco Pereira da silva o que está aqui em cauda é a logica da combinação.
O acórdão 213/95 de 20 de Abril, diz que não há normas penais em branco pois não é uma penalização apenas por desrespeito da conduta administrativa, logo não há ilegalidade.

Na dimensão Contra-Ordenacional
Há um conjunto muito grande de leis que tratam disto mas desde 2006 temos a lei-quadro que tenta enquadrar o assunto. O Professor Vasco Pereira da Silva é da opinião que o legislador deveria ter ido mais longe e procedido a uma codificação.
O problema é que só se aplica para o futuro por não ter sido feito um apanhado das contra-ordenações já existentes.

As vantagens desta lei quadro são:
-o alargamento da esfera contra-ordenacional, presente no artigo 8º/2 da mesma;
-as medidas cautelares especialmente pensadas para o ambiente, art. 41º e 42º;
-o amplo leque de sanções acessórias, art. 30º.
-criação de um registo para cumulação de infracções do mesmo individuo.
-prever regras como mecanismos de natureza preventiva.

Todas estas são medidas muito favoráveis à realidade ambiental.

Os inconvenientes:
-o método não foi o mais adequado e a técnica legislativa também não.
-algumas normas são demasiado abertas provocando problemas constitucionais.
-os arts 21º e 22º classificam as contra-ordenações em leves, graves e muito graves mas essa tipificação só pode valer para o futuro.

Perde-se uma oportunidade de fazer uma verdadeira codificação mas aquilo que temos agora não deixa de ser muito bom.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Uma nova perspectiva sobre A Declaração de Impacte Ambiental


Uma nova perspectiva sobre
A Declaração de Impacte Ambiental

A importância do tema e o seu referencial central. 2. A Avaliação de Impacte Ambiental – o seu enquadramento geral e a Declaração de Impacte Ambiental. 3. DIA – o exercício do poder administrativo na decisão final. 4. A competência para o proferimento da DIA. 5. Impugnabilidade judicial da DIA. 6. Síntese conclusiva. 7. Principal Bibliografia.

Por Jorge Miguel Pação Polido

1.      A importância do tema e o seu referencial central


    A avaliação de impacte ambiental emerge no ordenamento jurídico português como instrumento fundamental de carácter preventivo da política do ambiente e como tal reconhecido pela Lei de Bases do Ambiente, em vigor desde 1987.

   A Declaração de Impacte Ambiental adquire clara centralidade enquanto decisão final e vinculativa da viabilidade do projecto em análise. A DIA é o ponto de chegada de uma longa e complexa sequência juridicamente ordenada de actos e formalidades tendentes à determinação da viabilidade ambiental de um dado projecto.

   A indesmentível relevância desta decisão torna indispensável definir os pressupostos da sua emanação. A definição do modo de exercício do poder administrativo aquando da emanação da DIA não deve ser ignorada numa abordagem sistemática integrada da avaliação de impacte ambiental.

   Qual será então a margem de apreciação da entidade responsável por esta decisão? Estaremos perante o exercício de um poder discricionário, de um poder administrativo vinculado ou no âmbito da já tradicional discricionariedade técnica?
    De iure condendo, qual o órgão administrativo que asseguraria uma melhor e necessariamente mais ponderada Declaração de Impacte Ambiental?

      A importância e complexidade das questões agora invocadas exigem uma explicação adicional. Esperamos tornar compreensível e de leitura fácil esta exposição ao esclarecer o leitor quanto ao caminho a percorrer nas linhas que seguem:

    Num primeiro momento, centraremos as nossas atenções na DIA enquanto conceito jurídico e fase processual, realizando o seu enquadramento na avaliação de impacte ambiental. Procuraremos focar os pontos essenciais do seu regime para que partamos de forma segura para uma análise do modo de exercício do poder administrativo aquando da Declaração de Impacte Ambiental.

    Será entre a discricionariedade e a vinculação que nos movimentaremos num segundo momento do nosso estudo. Perante a importância desta decisão, a determinação do grau de vinculação do órgão administrativo competente assume-se como o referencial central do nosso estudo. No fundo, ultrapassando a já esclarecida questão do carácter vinculativo da DIA no actual regime, centramos a nossa análise no poder administrativo exercido pela entidade competente para esta decisão e no esclarecimento do seu conteúdo, pressupostos e limites.

    Por fim, retirando as devidas consequências da principal questão a abordar, iremos tecer algumas considerações de iure condendo quanto ao órgão administrativo competente para a DIA e finalmente quanto à impugnação judicial da Declaração de Impacte Ambiental.











2. A Avaliação de Impacte Ambiental – o seu enquadramento geral e a Declaração de Impacte Ambiental.

    A avaliação ambiental de projectos públicos ou privados consiste na avaliação dos efeitos previsíveis do projecto no ambiente, nomeadamente na população, fauna, flora, solo, água, atmosfera, paisagem e factores climáticos.

    No ordenamento jurídico português, a primeira referência à avaliação ambiental consta da Lei de Bases do Ambiente (LBA - Lei n.º 11/87, de 7 de Abril) que refere a necessidade de avaliação prévia do impacte provocado por obras e define que os projectos que possam afectar o ambiente terão de ser acompanhados de um estudo de impacte ambiental. Só com a transposição da Directiva 85/337/CEE se procedeu à concretização legal desta avaliação prévia, numa clara aplicação do princípio da prevenção ambiental. A Directiva 85/337/CEE foi transposta para o ordenamento jurídico português através do Decreto-Lei nº 186/90, de 6 de Junho.
  
     Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 69/2000, de 3 de Maio revogou toda a legislação anterior, aprovando o novo regime jurídico de AIA que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 85/337/CEE, com as alterações introduzidas pela Directiva n.º 97/11/CE, do Conselho, de 3 de Março de 1997.
  
      O actual regime jurídico da avaliação de impacte ambiental consta deste Decreto-Lei n.º 69/2000, na redacção que lhe foi dada, por último, pelo Decreto-Lei n.º 197/2005, de 8 de Novembro, que transpôs a Directiva n.º2003/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Maio.

     Será com base neste novo regime que iremos proceder ao necessário enquadramento da DIA no procedimento de avaliação de impacte ambiental.

     Assim, torna-se necessário realizar uma breve exposição quanto ao procedimento de Avaliação de Impacte Ambiental.
    
    Podemos descrever a AIA quanto aos seus momentos essenciais em cinco etapas:

1. Iniciativa do procedimento pelo proponente e apresentação do Estudo de Impacte Ambiental (EIA).

2. Parecer preliminar por parte da Comissão de avaliação.

3. Discussão pública e participação dos interessados na AIA.

4. A Avaliação de impacte ambiental stricto sensu, que é da responsabilidade da Autoridade AIA, cabendo à Comissão de avaliação elaborar um parecer final que dará suporte à DIA.

5. Decisão ambiental sobre a viabilidade do projecto que consta da DIA. A DIA é da competência do Ministro competente para a área do ambiente, tem carácter vinculativo e pode ser favorável,favorável condicionada ou desfavorável.
    




   Assim, a DIA assume-se como o momento decisivo deste longo procedimento, justificando-se uma análise integrada e cuidada da sua emanação, conteúdo e limites.
    
      No entanto, não podemos esquecer que a DIA é “apenas” o acto final de um longo procedimento que não pode ser descurado aquando da interpretação dos preceitos referentes à Declaração de Impacte Ambiental. Exige-se uma interpretação sistemática de tais preceitos, respeitando a base axiológico-valorativa deste procedimento administrativo.








3. DIA – O exercício do poder administrativo na decisão final

   3.1 Natureza jurídica da DIA e sua vinculatividade.


   A importância da DIA enquanto decisão final encontra-se, neste momento, perfeitamente esclarecida. A decisão sobre a viabilidade da execução de projectos susceptíveis de provocar determinados efeitos ambientais será, sem dúvida, o momento decisivo da avaliação de impacte ambiental.

   A delimitação do modo como a entidade competente toma esta decisão torna-se elemento essencial de uma análise integrada da AIA e do seu actual regime.
No entanto, só o poderemos fazer depois de esclarecermos devidamente a natureza jurídica deste acto afinal. Estamos perante uma das questões que maior divergência provocou junto da doutrina quanto à DIA1. 
   A questão parece ter ficado definitivamente resolvida pelo actual regime. Estaremos perante o exercício do poder administrativo através de um acto administrativo que é pressuposto de validade de um futuro acto licenciador ou autorizativo de um projecto, surgindo estes actos no âmbito de um procedimento faseado e de elevada complexidade2.
  A DIA será um acto administrativo integrante de uma relação jurídica duradoura e que se apresenta como pressuposto de um conjunto de actos jurídicos administrativos posteriores3.

     Por outro lado, outra das questões que importa resolver a priori prende-se com a obrigatoriedade da DIA, ou seja, a sua vinculatividade.
     À luz do regime anterior consagrado no Decreto-Lei nº186/90 de 6 de Junho, a entidade competente para a aprovação ou licenciamento do projecto deveria apenas “ter em consideração” o parecer de AIA. Assim, a entidade competente para o licenciamento poderia autorizar um dado projecto ainda que o “parecer” de AIA fosse negativo.
   
     No entanto, à luz actual regime previsto no Decreto-Lei nº69/2000 a força jurídica da decisão final do procedimento adquire contornos jurídicos distintos. O artigo 20.º nº1 deste diploma é claro ao definir que o acto de licenciamento ou de autorização só poderá ser praticado perante DIA favorável ou parcialmente favorável ou em caso de deferimento tácito. A reforçar a vinculatividade da DIA encontra-se o n.º3 do artigo em análise, determinando a nulidade dos actos administrativos que desrespeitem os números anteriores, ou seja, padecerá de nulidade o acto autorizativo de um projecto em relação actual foi emitida DIA desfavorável.
 
    Perante a actual vinculatividade de Declaração de Impacte Ambiental, a questão central do ponto de vista científico-dogmático já não será a discricionariedade do acto autorizativo posterior mas sim, a margem de apreciação e os contornos do poder administrativo exercido pela entidade competente na Declaração de Impacte Ambiental.



     “Escapando” à tendência revelada pela maioria da doutrina para uma análise focada na discricionariedade ou vinculação do acto autorizativo final4, consideramos fulcral face ao regime actual, analisar a DIA enquanto momento decisório vinculativo, determinando a margem de apreciação do ministro responsável pela área do ambiente no proferimento da DIA em relação ao parecer final da comissão de avaliação.





3.2. Declaração de Impacte Ambiental – Discricionariedade e vinculação

     Como já vimos, a problemática referente à margem de apreciação da entidade competente para o proferimento do acto autorizativo face a DIA encontra-se resolvida pelo actual regime que regula a avaliação de impacte ambiental enquanto instrumento preventivo fundamental da política do ambiente.
    Problema distinto mas com contornos de abordagem científica similar será a determinação do grau de vinculação ou discricionariedade no proferimento da DIA, decisão da competência do ministro competente para a área do ambiente nos termos do artigo 18.º n.º 1 do DL n.º 69/2000 de 3 de Maio.
   Após uma tramitação processual complexa e diferentes momentos com características decisórias, torna-se essencial determinar o grau de vinculação da Declaração de Impacte Ambiental, nomeadamente face ao parecer final da comissão de avaliação e posterior proposta por parte da autoridade da AIA.
     Em primeiro lugar, referência para impossibilidade de realizarmos uma distinção estanque entra discricionariedade e vinculação no exercício do poder administrativo. Na verdade, todos os actos administrativos serão simultaneamente vinculados e discricionários. Serão vinculados quanto a certos aspectos e discricionários em relação a outros5. Cabe-nos sim, analisando o regime legal vigente, verificar se o proferimento da DIA assenta na emanação de um acto administrativo predominantemente discricionário ou se estamos perante um acto administrativo predominantemente vinculado.
   
    Uma das questões para as quais teremos que inevitavelmente encontrar resposta diz respeito à influência da discricionariedade técnica na análise desta problemática.
    No proferimento da DIA estaremos perante uma decisão da Administração que assenta maioritariamente num procedimento de conteúdo iminentemente técnico, como se retira do conteúdo do próprio EIA. No entanto, parece-nos que o sentido e o conteúdo da DIA serão fortemente condicionados pelos actos administrativos praticados ao longo de toda a tramitação procedimental que precedeu a decisão final. Nomeadamente, no âmbito da chamada “discricionariedade técnica”, o vínculo poderá ser de tal forma intenso que a decisão final de AIA esteja restringida à adopção da única solução possível. Mesmo perante as situações em que haja várias soluções a adoptar aquando da DIA, a escolha do seu conteúdo terá que se conformar com obrigação de optar pela melhor solução possível à luz do dever de boa administração.
    Assim, não nos parece que a discricionariedade técnica possa ser invocada para defender a existência de uma ampla margem de apreciação da entidade competente para o proferimento da Declaração de Impacte Ambiental.
     Estamos perante uma sequência complexa e demorada de actos e formalidades no qual se procura ponderar e conciliar as vantagens e inconvenientes do projecto do ponto de vista ambiental. O número elevado de entidades intervenientes deste procedimento e de fases procedimentais reflecte a preocupação do legislador com a ponderação dos diferentes interesses e com a maturação na formação da vontade no exercício desta actividade administrativa.

    Com efeito, dificilmente puderemos conceber a emanação de uma DIA que ponha em causa o procedimento administrativo que a antecedeu e onde foram ponderadas as vantagens e inconvenientes do projecto em termos ambientais6.
   No entanto, o legislador, aquando da definição do regime legal e das correspondentes normas jurídicas aplicáveis in casu, parece ter adoptado uma solução distinta:
    Por um lado, nos termos do artigo 16.º nº 1 do DAIA, a comissão de avaliação procede à emanação de um “mero” parecer final sem carácter vinculativo. À luz desta disposição legal, o parecer final da comissão de avaliação não vincula a autoridade de AIA na proposta que apresenta ao ministro responsável pela área do ambiente. O mesmo acontece com a proposta da autoridade de AIA apresentada à entidade competente para o proferimento da DIA. O artigo 16.º nº 2 é claro quando procede à qualificação jurídica do acto da autoridade de AIA como “proposta”.

    Assim, após a longa tramitação procedimental que antecede da Declaração de Impacte de Ambiental, nem o parecer final da comissão de avaliação, nem o acto administrativo final da autoridade de AIA têm força vinculativa quanto à DIA proferida pelo ministro competente para o efeito. O único “laivo” de vinculatividade que é possível identificar no actual RAIA é a necessidade da DIA ter como conteúdo a identificação das razões de facto e de direito que “justificam a decisão”.
   No entanto, não parece ficar excluída a hipótese de proferimento de DIA devidamente fundamentada (do ponto de vista legal), mas que tome uma decisão diametralmente oposta ao sentido do parecer final da comissão de avaliação e posterior proposta da autoridade de AIA.


3.3. DIA – Discricionariedade ou vinculação? Uma solução de iure condendo.

   
     Como vimos, o actual regime atribui ao órgão competente para a DIA uma ampla margem de apreciação no momento da tomada de decisão.
   A ponderação dos diferentes interesses em causa e a aplicação procedimental do princípio da proporcionalidade exigiria uma vinculação e controlo que o legislador se eximiu de aplicar.
   A mera proposta por parte AIA com base no parecer final da comissão de avaliação é, no mínimo, insuficiente, deixando uma margem de discricionariedade elevada “nas mãos” do ministro responsável pela área do ambiente.
  Um maior rigor e transparência na tomada de decisão respeitaria o procedimento que a antecede, bem como tornaria mais eficaz a protecção ambiental conseguida pela AIA.
  
       Parece-nos essencial evitar situações em que projectos com impactes significativos no ambiente e com pareceres técnicos desfavoráveis anteriores à DIA obtenham uma decisão favorável do ministro competente para o efeito. Inexplicavelmente, esta discrepância decisória não está afastada pelo legislador, sendo inclusive promovida (esperemos, por lapso do legislador) no actual regime, na medida em que reforça o carácter não vinculativo do parecer final da comissão de avaliação, bem como da proposta da AIA que se segue neste procedimento ambiental.
    Por tudo isto, consideramos que, de iure condendo, a proposta da autoridade de AIA, quando desfavorável, deverá ser vinculativa da decisão presente na Declaração de Impacte Ambiental proferida pelo Mininstro responsável.
   Esta será a principal forma de evitar uma avaliação de impacte ambiental inútil, despicienda e que no final colocaria em causa o seu principal propósito: a tutela preventiva do ambiente.


4. A competência para o proferimento da DIA.

   Perante a posição adoptada supra, poderemos ter diferentes perspectivas quanto à atribuição da competência para o proferimento da Declaração de Impacte Ambiental.
   De iure constituto, a competência para a prática do referido acto administrativo é determinada à luz da previsão normativa específica presente no artigo 18.º nº1 do RAIA. O regime legal não oferece dúvidas quanto à competência do ministro responsável pela área do ambiente para o proferimento da DIA.
   No entanto, esta opção não estará isenta de críticas. Como já vimos, o ministro beneficia de uma ampla margem de apreciação que consideramos inconveniente face ao já exposto quanto à discricionariedade ou vinculação da DIA.
    Posto isto, será possível adoptar uma das seguintes posições de iure constituendo:

- Se o legislador adoptar a solução por nós já apresentada, ou seja, a proposta da autoridade de AIA, quando desfavorável, ser vinculativa da decisão presente na Declaração de Impacte Ambiental, a competência do ministro para o seu proferimento não colocará em causa a necessária tutela preventiva do ambiente como elemento teleológico fundamental da AIA.
- Se o legislador manter o regime legal vigente, permitindo a prática de um acto administrativo predominantemente discricionário no proferimento da DIA, então a solução legal quanto ao órgão competente para esta decisão terá que ser forçosamente diversa (nomeadamente, através da possível atribuição da competência para a DIA à autoridade de AIA) 7.



5. Impugnabilidade judicial da DIA.



   Considerando a posição já assumida quanto ao modo de exercício do poder administrativo no proferimento da DIA, torna-se por demais relevante abordar a vertente processual desta problemática, aspecto no qual o legislador, salvo melhor opinião, adoptou a solução legal adequada e permitiu uma interpretação jurisprudencial condizente com o exercício de uma tutela jurisdicional efectiva no controlo da decisão final na AIA.

    Num primeiro momento, respeitante à vigência do primeiro regime jurídico de AIA, o Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se pela impossibilidade de recorrer contenciosamente do despacho que homologava o “parecer” da comissão da avaliação de impacto ambiental. Este parecer não era vinculativo para a entidade que autoriza projecto e deste modo o STA entendeu que se tratava de um acto meramente interno que não definia a situação jurídica dos particulares.
   Esta situação alterou-se com a entrada em vigor do actual regime de AIA, na medida em que se consagrou o carácter vinculativo da Declaração de Impacto Ambiental, pois uma DIA desfavorável determina o indeferimento do pedido de autorização sob pena de nulidade do acto praticado, como já tivemos oportunidade de esclarecer.

    Perante este novo regime, a jurisprudência tem-se pronunciado uniformemente no sentido de admitir a impugnação contenciosa do acto de DIA. Parece não haver dúvidas sobre a impugnabilidade contenciosa da DIA, que se configura como um acto com eficácia externa que define a posição da Administração e dos particulares interessados.
    A favor desta impugnabilidade foi particularmente importante a entrada em vigor do novo CPTA, nomeadamente do seu artigo 51.º, confirmando de forma clara o costume jurisprudencial já abordado.

     Apesar das críticas já apontadas ao legislador quanto ao modo de exercício do poder administrativo no proferimento da DIA, será de aplaudir a actual possibilidade legal de impugnação desta decisão final. No entanto, não podemos deixar de apontar a incoerência legislativa que mais uma vez decorre da falta de vinculação da DIA face ao parecer final da comissão de avaliação. Prevendo o regime jurídico actual que a autoridade de AIA apenas apresenta uma mera proposta ao órgão competente para a decisão final, os casos de procedência do pedido de nulidade de uma Declaração de Impacte Ambiental ficarão amplamente reduzidos. Assim, a actual possibilidade de impugnação da DIA corrobora as críticas já apontadas à actual margem de apreciação deixada “nas mãos” ministro competente para o proferimento da DIA e que, pelas razões já apontadas, deveria ser convenientemente restringida.




 


6. Síntese conclusiva


    Em suma, a DIA emerge como o momento decisivo de toda a sequência juridicamente ordenada tendente à protecção do ambiente à luz do princípio da prevenção.

   Perante esta importância indesmentível, a sua conformação jurídica por parte do legislador assume-se como um dos pontos essenciais no RAIA.

    Não nos parece, todavia, que o actual regime ofereça, quer à Administração, quer aos particulares, a melhor solução para uma efectiva protecção preventiva do ambiente.

    A posição adoptada e as respectivas soluções apresentadas não são mais do que uma tentativa de melhorar e promover a proficuidade da Avaliação de Impacte Ambiental.
 
     Assumindo-se este procedimento como uma das principais formas de protecção do ambiente, merece da parte da doutrina e jurisprudência uma atenção cada vez mais premente e redobrada, apontando as suas falhas e elogiando as suas virtudes, tudo em nome de uma protecção cada vez mais eficaz do ambiente no Regime de Avaliação de Impacte Ambiental.



 Notas:


1. Para um maior desenvolvimento, cfr. JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DIAS, MARIA ALEXANDRA DE SOUSA ARAGÃO E MARIA ANA BARRADAS TOLEDO ROLLA, Regime Jurídico da Avaliação de Impacte Ambiental em Portugal - comentário / Environmental Impact Assessment Law in Portugal - with comments, p.73.

2. Neste sentido, cfr. FERNANDO ALVES CORREIA, A avaliação ambiental de planos e programas: um instituto de reforço da protecção do ambiente no Direito do Urbanismo, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Manuel Henrique Mesquita, vol. I, Coimbra, 2009, p. 452.

3. Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito, Almedina Editora, 2002, p.163.


4. Cfr. LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, O Procedimento Administrativo de Avaliação de Impacto Ambiental - Para uma tutela preventiva do ambiente, Almedina Editora, 1998, p.211 e ss.


5.Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo Volume II, Almedina Editora, 2009, p.77.

6. Cfr. DELL’ANNO, “Il procedimento” in “La valutazione d’impatto ambientale”, p.87.

7. Com uma solução semelhante mas fundamentação distinta, cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito, Almedina Editora, 2002, p.162.

 

 

Nota: O texto não se encontra escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.




7. Principal Bibliografia.


ALVES CORREIA, FERNANDO, A avaliação ambiental de planos e programas: um instituto de reforço da protecção do ambiente no Direito do Urbanismo, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Manuel Henrique Mesquita, vol. I, Coimbra, 2009.

BARRADAS TOLEDO ROLLA, MARIA ANA, Regime Jurídico da Avaliação de Impacte Ambiental em Portugal - comentário / Environmental Impact Assessment Law in Portugal - with comments, Almedina Editora, 2002.
COLAÇO ANTUNES, LUÍS FILIPE, O Procedimento Administrativo de Avaliação de Impacto Ambiental - Para uma tutela preventiva do ambiente, Almedina Editora, 1998.

DELL’ANNO, PAOLO “Il procedimento” in “La valutazione d’impatto ambientale.

FIGUEIREDO DIAS, JOSÉ EDUARDO, Regime Jurídico da Avaliação de Impacte Ambiental em Portugal - comentário / Environmental Impact Assessment Law in Portugal - with comments, Almedina Editora, 2002.
FREITAS DO AMARAL, DIOGO, Curso de Direito Administrativo Volume II, Almedina Editora, 2009.

PEREIRA DA SILVA, VASCO, Verde Cor de Direito, Almedina Editora, 2002.

SOUSA ARAGÃO, MARIA ALEXANDRA, Regime Jurídico da Avaliação de Impacte Ambiental em Portugal - comentário / Environmental Impact Assessment Law in Portugal - with comments, Almedina Editora, 2002.


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