quinta-feira, 24 de maio de 2012

O dano ecológico e o seu regime jurídico: A Directiva 2004/35/CE e o DL 147/2008



Universidade de Lisboa
Faculdade de Direito

Direito do Ambiente
2011/2012
Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva

O DANO ECOLÓGICO E O SEU REGIME JURÍDICO: A DIRECTIVA 2004/35/CE E O DL 147/2008




Maria Margarida Pereira
Indice
1.      Introdução ------------------------------------------------------------       3
2.      A Directiva 2004/35/CE --------------------------------------------       5
3.      O Decreto-Lei 147/2008 -------------------------------------------        8
4.      Conclusão ------------------------------------------------------------      11
5.      Bibliografia ----------------------------------------------------------     12



Introdução
O fundamento da existência do instituto da responsabilidade por dano ecológico é o de ressarciar a geração presente pela degradação do estado de um determinado componente ambiental e, outrossim, proporcionar às gerações vindouras idêntico grau de fruição desse componente, repondo, sempre que possível, o estado anterior à ocorrência do facto lesivo. Com efeito, o facto de o Homem ser um ser mortal, fá-lo muitas vezes sacrificar o ambiente, ignorando os efeitos dos danos ambientais que provoca em detrimento do seu conforto ou do lucro que visa obter.
Assim, as instituições da Comunidade Europeia, levando a sério a prossecução da política ambiental comunitária, tomaram a dianteira do processo de elaboração de um quadro normativo inovador de regulação da prevenção e reparação do dano ecológico através da Directiva 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril. Esta directiva, cujo prazo de transposição expirou em Abril de 2007, foi transposta para o nosso ordenamento através do DL 147/2008, de 29 de Julho (adiante designado RRPDE).
Note-se que até ao surgimento do RRPDE o ordenamento jurídico português não autonomizava o dano ecológico do dano ambiental (atente-se, nomeadamente, na Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril)). Tal falha é, de resto, expressamente assumida pelo legislador, no Preâmbulo do diploma:

"Durante muitos anos a problemática da responsabilidade ambiental foi considerada na perspectiva do dano causado às pessoas e às coisas. O problema central consistia na reparação dos danos subsequentes às perturbações ambientais — ou seja, dos danos sofridos por determinada pessoa nos seus bens jurídicos da personalidade ou nos seus bens patrimoniais como consequência da contaminação do ambiente.
Com o tempo, todavia, a progressiva consolidação do Estado de direito ambiental determinou a autonomização de um novo conceito de danos causados à natureza em si, ao património natural e aos fundamentos naturais da vida. (...) Assim, existe dano ecológico quando um bem jurídico ecológico é perturbado, ou quando um determinado estado-dever de um componente do ambiente é alterado negativamente".
Assim, com o RRPDE afirmou-se, enfim, a diferença entre dano pessoal/patrimonial (dano ambiental strictu sensu) e dano ecológico. Mas não só. Clarificou-se igualmente a legitimidade para reclamar a sua reparação, fixaram-se os critérios de avaliação do dano e indicaram-se as formas da sua reparação.
Deste modo, procurar-se-à, na breve exposição que se segue, apresentar de forma sucinta (assim o exigem as ciscunstâncias em que o mesmo se desenvolve, não me imiscuindo, no entanto, de futuramente desenvolver o tema, já que muito mais haveria a acrescentar, tendo já, nessa altura, em conta os muitos desenvolvimentos que certamente se seguirão após a escrita deste paper) o regime estabelecido pelo RRPDE. Para tal começar-se-à, no entanto, por analisar a Directiva 2004/35/CE que esteve na génese do mesmo e cujas directrizes apontadas coincidem, em grande parte, com as adoptadas pelo legislador nacional pelo que nos centraremos, após a análise da Directiva, a identificar apenas algumas das inovações preconizadas pelo legislador nacional.  


A Directiva 2004/35/CE
O objecto da Directiva 2004/35/CE é, desde logo, estabelecido no seu artigo 1.º “A presente directiva tem por objectivo estabelecer um quadro de responsabilidade ambiental baseado no princípio do "poluidor-pagador", para prevenir e reparar danos ambientais.”. Ressalta, ab initio, que o intuito comunitário com a Directiva foi o de instituir uma disciplina comum relativa ao dano ecológico, com o objectivo de obter resultados a custos racionais para a sociedade. Assim, subjacente a este objectivo, pretende-se incitar os promotores a evitarem os danos. De facto, em regra, as despesas para a prevenção permitem evitar ou reduzir a possibilidade de que se produzam danos cujos custos de reparação seriam superior às despesas em prevenção dos mesmo. Consequentemente, os sujeitos potencialmente responsáveis são encorajados a investirem na prevenção em vez de suportarem os custos elevados da reparação. Não obstante, caso não o façam, serão responsabilizados para reparar os mesmos com respeito pelo princípio do “poluidor-pagador”.
Já no que concerne ao âmbito de aplicação material da Directiva, o mesmo é circunscrito aos danos às espécies e habitats naturais protegidos ao abrigo do regime da Rede Natura 2000 (ou seja, qualquer dano que produza efeitos negativos significativos sobre o atingimento ou a manutenção de um estado de conservação favorável a tais espécies e habitats), às águas indicadas na Directiva 2000/60/CE e ao solo (o dano é aqui limitado às contaminações que comportem um risco significativo sobre a saúde humana conforme se retira do artigo 11º/e) iii) e Anexo III, ponto 2, não se tratando assim de um verdadeiro dano ecológico, mas antes de um dano ambiental strictu sensu). Note-se, no entanto, que a Directiva deixa aos Estados a decisão de poderem alargar o âmbito do dano ecológico a outros componentes ambientais.
Acresce que na Directiva o dano deve apresentar algumas características genéricas, ou seja, ser concreto, qualificável e significativo.
Prevê igualmente a Directiva uma “protecção antecipada” face a uma ameaça iminente, ou seja, em virtude de um perigo actual e concreto de ocorrência de um dano futuro (veja-se o seu artigo 5.º).
A Directiva aplica-se a dois tipos de actividades profissionais, as elencadas no Anexo III (tratam-se de doze actividades económicas consideradas de risco intrinseco ao desenvolvimento das mesmas e já disciplinadas noutras Directivas especiais) e, a todas as actividades não elencadas no Anexo III em que se cause um dano ou ameaça às espécies e habitats protegidos com culpa ou negligência. Com efeito, a Directiva estatui expressamente no seu artigo 3.º, al. d), que a responsabilidade tem natureza subjectiva (depende de culpa ou dolo do agente) para as actividades não elencadas no Anexo III pelo que, implicitamente, se pode retirar que está prevista responsabilidade objectiva para as actividades elencadas no Anexo III (com consequente inversão do ónus da prova).
A Directiva preocupou-se ainda em prever os casos de exclusão obrigatória da responsabilidade. Os mesmo estão previstos no artigo 4.º, no artigo 8.º, n.º 3, als. a) e b) e no artigo 17.º. Acresce que existem também casos de exclusão facultativa da responsabilidade, ou seja, permite-se que os Estados-membros excluam, total ou parcialmente, a responsabilidade do operador quando não tenha havido culpa do operador e a actividade foi validamente autorizada; quando não tenha havido culpa do operador e os danos se filiam em riscos imprevisíveis; quando o custo da adopção de medidas complementares tomadas para atingir o estado inicial ou um nível similar for desproporcionado em relação aos benefícios ambientais a obter.
A Directiva estatui que todo o custo de prevenção ou reparação do dano incide sobre o autor do dano (ressalve-se, no entanto, que a directiva autoriza os Estados-membros a dispensar o operador de custear as operações de reparação de danos ecológicos advenientes de actividade por si desenvolvida em determinados casos, e nomeadamente quando inexistir culpa daquele). Note-se que o custo compreende a lesão do ambiente, os serviços conexos e as despesas de avaliação administrativa e legais, de recolha dos dados, de controlo e de vigilância. Não obstante, em caso de existência de uma pluralidade de autores aplicam-se as normas nacionais. Realce-se que o titular do direito a reparação/prevenção é a Autoridade Pública e não os privados. Com efeito, estes últimos têm direito à saúde e ao património, não à restauração do dano ambiente.
É indubitável que o dano ambiental assume uma tripla dimensão: pessoal, social e pública. Nesse sentido, a Directiva reconhece no artigo 12.º um papel às pessoas físicas ou jurídicas e às ONG no sentido de poderem activar um procedimento administrativo perante a Autoridade, consistente num pedido de acção de reparação,  acompanhada dos dados e informações relevantes e, ainda, de intervir no procedimento desencadeado pela Autoridade por iniciativa própria. Já o artigo 13.º permite às pessoas físicas e jurídicas activarem um procedimento de recurso perante um órgão judiciário ou administrativo para controlar a legalidade processual e substantiva das decisões, dos actos ou das omissões da autoridade competente. São, não obstante, ressalvadas as disposições nacionais sobre o acesso à justiça.
Os Estados-membros deverão, segundo a Directiva (artigo 14.º), “tomar medidas destinadas a incentivar o desenvolvimento, pelos operadores económicos e financeiros devidos, de instrumentos e mercados de garantias financeiras, incluindo mecanismos financeiros em caso de insolvência, a fim de permitir que os operadores utilizem garantias financeiras para cobrir as responsabilidades que para eles decorrem da Directiva”. Reconheceu-se, deste modo, a necessidade de cobertura de riscos agravados por parte dos operadores.


O Decreto-Lei 147/2008
A transposição da Directiva para o nosso ordenamento deu-se, como se disse, através do DL 147/2008 (RRPDE). No entanto, o nosso legislador, em vez de se limitar a regular neste diploma a prevenção e reparação de dano ecológico, inclui nele um Capitulo II sob a epígrafe “Responsabilidade Civil” que se revela perfeitamente desnecessário já que vem duplicar disposições do Código Civil aplicáveis em sede de danos pessoais e patrimoniais (danos ambientais strictu sensu), desvirtuando, de certo modo, a finalidade do diploma regular tão-só a prevenção e reparação de danos ecológicos. Feita esta ressalva, passar-se-ão a referir as principais inovações presentes no diploma em relação à Directiva.
Começando pelo âmbito de aplicação material do RRPDE o nosso legislador procedeu a um alargamento do mesmo, nomeadamente no que diz respeito à protecção de espécies e habitats protegidos. Com efeito, a Directiva refere apenas como objecto de protecção as espécies e habitats protegidos ao abrigo do regime da Rede Natura 2000, enquanto que o RRPDE remete a identificação para a "legislação aplicável”, o DL 142/2008, de 24 de Julho (Regime da conservação da natureza e da biodiversidade) que alarga as áreas protegidas para além das contantes no regime da Rede Natura 2000 a outras classificadas ao abrigo de outros instrumentos internacionais assumidos pelo Estado Português .
Verifica-se igualmente um alargamento do âmbito subjectivo de aplicação. De facto, enquanto que a Directiva estatui a responsabilização, assente na culpa, de todos os sujeitos e entidades, independentemente da actividade, por danos infligidos a espécies e habitats protegidos ao abrigo do regime da Rede Natura 2000, o RRPDE acrescenta a este universo a responsabilização daqueles por quaisquer danos ecológicos, desde que compreendidos nas categorias enunciadas no artigo 11º., n.º1, al.e), ou seja, também ao solo e à água.
Como suprareferido na página seis, a directiva autoriza os Estados-membros a dispensar o operador de custear as operações de reparação de danos ecológicos advenientes de actividade por si desenvolvida em determinados casos, e nomeadamente quando inexistir culpa daquele. O legislador aproveitou esta ressalva para dois grandes grupos de casos (artigo 20º.): Responsabilidade por facto de outrem ou instrução administrativa; Responsabilidade objectiva.
No que respeita à responsabilidade por facto de outrem ou instrução administrativa, o operador deverá avançar com o montante necessário exigido pelas medidas preventivas/reparatórias disfrutando, não obstante, de direito de regresso quer contra o terceiro que provocou a ameça ou o dano quer contra a autoridade que emitiu a instrução que concorreu para a formação da ameaça ou para a verificação do dano.
Já quanto à responsabilidade objectiva (independentemente de culpa portanto) existem dois tipos de situações em que  o operador fica dispensado de custear as operações. Assim, no caso de actividades inscritas no Anexo III, o operador ficará isento de responsabilidade por danos/riscos associados ao funcionamento normal da instalação, mas já não aos adjacentes ao funcionamento anormal. Já nas actividades não inscritas no Anexo III (por conseguinte não classificadas como tipicamente perigosas) nunca há responsabilização a título objectivo. Assim, é o Estado que executa as medidas necessárias e suporta estes custos, financiando-se a partir do Fundo de Intervenção Ambiental.



Conclusão
Sem dúvida, que existirá ainda um longo caminho a percorrer no sentido da perservação do ambiente e no da execução das medidas de prevenção e  reparação dos danos que lhe forem causados.

No entanto, foram dados importantes passos legislativos para clarificar conceitos e responsabilizar quem olvida que não seremos os últimos seres humanos à face da Terra, que também os nossos filhos, netos e todas as gerações vindouras têm direito a um ambiente saudável, que a degradação ambiental que vimos observando nas últimas décadas obriga, cada vez mais, a que o crescimento económico, a mera vontade de lucro ou lazer despreocupado sejam substituídas por um desenvolvimento sustentável, respeitador do meio ambiente. De facto, já nos alertava Albert Schweitzer, respeitável Nobel da Paz em 1952, que “Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar o seu semelhante.”.

O tempo encarregar-se-à de nos permitir julgar facticamente se as opções recentemente tomadas foram as ideais ou não para a defesa do Ambiente e quais as medidas necessárias de adaptação que os novos desafios ambientais (de resto em permanente aparecimento) se imporão. No entanto, é de aplaudir a crescente consciencialização de que o Ambiente é, hodiernamente, um dos temas mais sensíveis e que se impõem medidas de preservação e defesa urgentes, preocupadas e racionais. De facto, nós, humanos, seres racionais, parecemos ter-nos esquecido, durante largos anos, que sem ambiente não haverá vida e que o facto de não sermos imortais, não nos deve fazer desprezar os nossos semelhantes e os que viverão depois de nós.

Bibliografia
GOMES, Carla Amado:
– “A responsabilidade civil por dano ecológico” in O que há de novo no Direito do Ambiente?, Actas das Jornadas de Direito do Ambiente, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 15 de Outubro de 2008, org. de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, Lisboa, 2009, pp. 235 e segs.
- “Direito Administrativo do Ambiente” in Tratado de direito administrativo especial, vol. I, Coimbra, 2009

SILVA, Vasco Pereira da
– “Ventos de mudança no Direito do Ambiente – A responsabilidade civil ambiental” in O que há de novo no Direito do Ambiente?, Actas das Jornadas de Direito do Ambiente, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 15 de Outubro de 2008, org. de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, Lisboa, 2009, pp. 9 e ss.
- Verde Cor de Direito – Lições de Direito de Ambiente, Almedina

OLIVEIRA, Ana Perestrelo de – Causalidade e Imputação na Responsabilidade Civil Ambiental, Coimbra, Almedina (2007)

SENDIM, José Cunhal – Responsabilidade civil por danos ecológicos, Coimbra, 1998

Sem comentários:

Enviar um comentário