Faculdade de
Direito de Lisboa
Direito do Ambiente
A protecção jurídica
dos animais
I.
O tema – a protecção jurídica dos
animais
A questão dos “direitos dos
animais” tem sido objecto de uma gradual consciencialização na sociedade, com
reflexos na produção legislativa, no sentido de proteger o bem-estar animal,
podendo afirmar-se que esta constitui, já hoje, um valor estruturante das
modernas sociedades pós-industriais, quer a nível interno, quer a nível
internacional.
A fundamentação ético-cultural da
protecção dos animais pode considerar-se adquirida. A transposição jurídica – o
que é dizer: prática – dos dados adquiridos suscita, porém, inúmeras
dificuldades técnicas e de fundo.
II.
O Direito Comparado
Como Lei moderna de defesa dos
animais cita-se o britânico Martin’s Act, de 22 de Julho de 1822, to prevent the cruel and improper treatment
of cattle. Este diploma formalizou entendimentos já consagrados pelos
Tribunais, em 1770 (Menezes Cordeiro,
Tratado de Direito Civil Português,
tomo II, Almedina, 2002, página 217).
Em França, as primeiras medidas datam da Revolução : uma Lei de 28 de
Setembro de 1791 reprime maus tratos infligidos a animais alheios. Mas, apenas
a Lei GRAMMONT de 2 de Julho de 1850 proibiu maus tratos a animais, mesmo
próprios, na via pública. Só a 7 de Setembro de 1959 desapareceu a
“publicidade” como condição para a repressão aos maus tratos em causa.
Actualmente, distingue-se claramente os animais dos objectos. E, já antes desta
reforma estava estabelecida uma corrente jurisprudencial que tomava em
consideração os interesses dos animais, normalmente acoplando-os aos interesses
do proprietário.
Nos casos de divórcio, os
tribunais franceses desde há muito regulam o direito de visita dos animais de
companhia. Em matéria de locação consagrou-se o direito de criar animais
domésticos em casa arrendada. Desde o caso “Lunus” é reconhecido um valor de
afeição no caso de morte de animal doméstico, pelo que pode ser reconhecida uma
compensação pelo dano moral sofrido. O direito penal francês reconhece, desde
1992, que as infracções contra animais se devem estabelecer de forma separada
das infracções contra os bens.
A Áustria foi pioneira, ao nível do Direito Civil, ao aprovar, a
1/3/1988, a Lei Federal sobre o estatuto jurídico do animal. Alterou-se o
conceito de coisa e introduziram-se alterações no regime da obrigação de
indemnização. Assim, o Código Civil austríaco (ABGB), que adopta um conceito
muito amplo de coisa, afirma que os “animais não são coisas; são protegidos
mediante leis especiais” e, no caso de o animal ser ferido, são reembolsáveis
as despesas efectivas com o seu tratamento mesmo que excedam o valor do animal,
na medida em que o dono do animal razoável, colocado na situação do lesado,
também tivesse realizado essas despesas, (André
Dias Pereira, “Tiro aos pombos” na
Jurisprudência Portuguesa, in Cadernos de Direito Privado, nº12, 2005,
páginas 38 e 39)
Na Alemanha, as regras iniciais de protecção ocorreram em 1838.
Num curioso paradoxo histórico, a
lei mais avançada de tutela dos animais foi, na época, o Reichstierschutzgesetz de 24 de Novembro de 1934 : tratava-se de
uma lei que proibia a própria experimentação animal.
Actualmente rege, na Alemanha, o Bundestierschutzgesetz de 18 de Agosto
de 1986, apesar deste país ter seguido o exemplo da Áustria, introduzindo um
preceito que dispõe que “os animais não são coisas, sendo protegidos por
legislação especial”.
A maior parte da doutrina, quer na
Áustria, quer na Alemanha, tem vindo a criticar estas reformas, alegando que
estas normas não melhoram em nada a condição jurídica dos animais e que, na
verdade, o mais que protegem são os interesses dos donos dos animais, e destes
apenas dos de companhia. A reforma foi, contudo, apreciada positivamente por
uma parte minoritária da doutrina, por se entender que o animal, sendo
perspectivado como criatura e já não como “coisa”, é mais protegido (André Dias Pereira, Ob. cit., página 39)
Quanto a nós, não podemos deixar
de alinhar por este último entendimento. Efectivamente, a ideia de coisa de que
alguém é proprietário tem imbuída a faculdade de gozo, fruição e destruição.
Uma coisa é, na lição de Menezes
Cordeiro, “uma realidade
figurativamente delimitada à qual o Direito dispensou o estatuto historicamente
determinado de seres inanimados”. Parece-nos que esta construção de coisa,
que nos é dada pela história milenar do Direito Civil, não se coaduna com a
consciência que a sociedade e o próprio Direito têm desenvolvido acerca dos
animais. Ao proprietário do animal não se reconhece a faculdade de destruição
do mesmo! E seria chocante que se atribuísse essa possibilidade nos casos em
que os aimais são res nullius.
Diríamos que a evolução das construções doutrinárias acompanha e espelha o
respeito e a evolução das mentalidades. A ideia de coisa como algo totalmente
submetido à vontade humana deve ser abandonada. Há regras a observar que, no
caso dos animais, são suficientemente incisivas. Há muito que o sentimento
jurídico comum toma os animais como coisas suis generis, estas reformas vêm
oficializar essa especialidade.
A atenção dos diversos países tem
vindo a concentrar-se na tutela internacional, abaixo aludida, mas as
Constituições internas da Suíça,
Alemanha e do Brasil reconhecem que os animais merecem protecção.
A Constituição Brasileira é bem mais incisiva que a Portuguesa na
defesa do bem-estar dos animais. O artigo 225º/VII dispõe que incumbe ao Poder
Público “proteger a fauna e flora, vedadas, na forma da lei, a práticas que
coloquem em risco a sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou
submetam os animais a crueldade”, (Heline
Silvini Ferreira, Política ambiental
constitucional, in Direito Constitucional ambiental brasileiro, coord. de
J.J.Gomes Canotilho e R. Morato Leite, São Paulo, 2007, página 257).
III.
A Protecção dos animais a nível
internacional
Os animais dispõem, graças ao
papel do Conselho da Europa, de uma protecção internacional já considerável.
Em 10 de Março de 1976, foi
celebrada a Convenção Europeia sobre a
Protecção dos Animais nos Locais de Criação (Decreto-Lei nº 5/82 de 20 de
Janeiro). Essa Convenção foi alargada pelo Protocolo de Alteração de 6 de
Fevereiro de 1992, aprovado para ratificação pelo Decreto- Lei nº1/93 de 4 de
Janeiro.
Em 13 de Novembro de 1987, foi
adoptada a Convenção Europeia para a
Protecção dos Animais de Companhia, aprovada para ratificação, pelo Decreto
nº13/93 de 13 de Abril. De notar que, na versão francesa, se usa correntemente
o termo neutro “detenção de um animal” – artigo1º nº1 e artigo 4º, como
exemplos – quando, na tradução portuguesa, se usou (indevida e
desnecessariamente) a locução “posse de um animal”. Prevalece, todavia, a
versão francesa (Menezes Cordeiro,
Ob. cit., página 219).
Vamos reter alguns preceitos da
Convenção:
Artigo. 3º
Princípios
fundamentais para o bem-estar dos animais
1.
Ninguém deve inutilmente causar
dor, sofrimento ou angústia a um animal de companhia.
2.
Ninguém deve abandonar um animal
de companhia.
Artigo. 4º
Posse (Detenção)
1.
Qualquer pessoa que possua
(detenha) um animal de companhia ou que tenha aceitado ocupar-se dele deve ser
responsável pela sua saúde e pelo seu bem-estar.
2.
Qualquer pessoa que possua
(detenha) um animal de companhia ou que dele se ocupe deve proporcionar-lhe
instalações, cuidados e atenção que tenham em conta as suas necessidades
etológicas, em conformidade com a sua espécie e raça(…).
3.
Um animal não deve ser possuído
(detido) como animal de companhia se:
a) As
condições referidas no anterior nº2 não forem preenchidas; ou
b) Embora
essas condições se encontrem preenchidas, o animal não possa adaptar-se ao
cativeiro.
O treino de animais não deve ser
prejudicial para a sua saúde e bem-estar, artigo7º; são proibidas intervenções
cirúrgicas sem fins curativos, artigo10º nº1; o sacrifício de um animal deve
ser feito sem dor, precedendo anestesia feral profunda, artigo11º. Prevê-se,
ainda, o lançamento de programas de informação e educação, artigo14º.
Fazem, igualmente, parte do nosso
ordenamento jurídico a Convenção para a
protecção de animais em abate de 10 de Maio de 1979 (Decreto-Lei nº99/81),
a Convenção Europeia relativa à
protecção da vida selvagem e do ambiente natural na Europa de 19 de
Setembro de 1979. Estas Convenções foram ratificadas pela República Portuguesa
e foram, deste modo, integradas na ordem jurídica europeia, formando, assim, um
acervo mínimo de protecção que vincula tanto a União Europeia como os Estados
europeus que são partes contratantes.
Para além das Convenções
Internacionais, tem ainda interesse mencionar Cartas e Declarações de protecção
aprovadas e proclamadas por Ligas Internacionais de reconhecido mérito e que,
embora não vinculantes, correspondem a autênticos códigos de ética universal e
são consideradas um dos exemplos paradigmáticos do Direito Internacional de
raiz costumeira. Assim, temos a Declaração
Universal dos Direitos do Animal,
proclamada na Unesco, em Paris, em 15 de Outubro de 1978, de que retemos alguns
artigos:
1º
Todos os animais têm direitos iguais à
existência no quadro dos equilíbrios biológicos. Essa igualdade não prejudica a
diversidade das espécies e dos indivíduos.
2º
Toda a vida animal
tem direito ao respeito.
3º
1.
Nenhum animal pode ser submetido a maus tratos ou a actos cruéis.
2. Se a morte de um animal for necessária, ela
deve ser instantânea, indolor e não geradora de angústia.
3. O animal morto
deve ser tratado com decência.
11º
1. Todo o acto que implique a morte de um
animal sem necessidade é um biocídio, isto é, um crime contra a vida animal.
Além disso, cumpre referir a Declaração sobre a Ética Alimentar, de 1981 e a Carta Mundial dos Estudantes para a Ciência e uma Biologia sem
violência, também de 1981.
IV.
A Protecção dos animais ao nível
da União Europeia
A versão originária do Tratado
institutivo da Comunidade Económica Europeia não se referia, de modo expresso,
à situação dos animais. Apenas o artigo36º, a propósito da tipificação de
razões justificativas de medidas restritivas à livre circulação de mercadorias
adoptadas pelos Estados-Membros, mencionava entre as razões a relativa à
“protecção da saúde e da vida das pessoas e animais ou plantas”.
Para Maria Luísa Duarte, o silêncio do Direito Comunitário originário
não deve surpreender. “Seria, pelo contrário,
motivo de fundadas interrogações um texto constitutivo de uma associação de
Estados europeus que proclamasse o imperativo da protecção do bem-estar dos
animais e omitisse- como foi o caso – qualquer referência aos direitos
fundamentais”.
Pese embora a ausência, no
Tratado da Comunidade Europeia, de normas de competência que dotassem os órgãos
comunitários dos poderes necessários à aprovação de regras aplicáveis à saúde e
ao bem-estar dos animais, tal não impediu a adopção de múltiplos instrumentos normativos
directa ou indirectamente subordinados a este objectivo (Maria Luísa Duarte, União
Europeia e Garantia do Bem-Estar dos Animais, in Estudos de Direito da
União e das Comunidades Europeias, Coimbra Editora, 2006, página 119).
A partir dos finais da década de 80,
aumentou o número de actos comunitários com incidência reguladora sobre a
situação dos animais: resoluções, decisões, regulamentos e, em particular,
directivas.
Estes actos visam a protecção dos
animais nos locais de exploração, em transporte, em situação de cativeiro,
abate de animais, experiências científicas e saúde dos animais.
No que respeita ao Direito da
União Europeia, cumpre salientar a sua efectividade na relação com os direitos
dos Estados-Membros. Em virtude da exigência do primado do Direito da União
Europeia, dos princípios da aplicabilidade directa e do efeito directo –
critérios gerais de articulação entre o ordenamento jurídico da União Europeia
e os ordenamentos jurídicos nacionais – os Estados-Membros estão obrigados a
respeitar e a fazer respeitar as normas europeias, através dos órgãos internos
competentes, de natureza legislativa, administrativa ou judicial.
Concretizando: se o Estado
Português não cumprir a obrigação de transposição correcta e atempada de uma
directiva comunitária para a ordem jurídica interna, as consequências estão bem
definidas na jurisprudência comunitária: 1) no plano comunitário, a possibilidade de instaurar uma acção por
incumprimento, por iniciativa da Comissão ou qualquer outro Estado, que pode
culminar na declaração de incumprimento, a exigir do Estado-membro condenado a
transposição efectiva da directiva; em face da eventual recusa de dar execução
interna ao acórdão do Tribunal de Justiça, pode este decidir a aplicação de
sanções pecuniárias ao Estado-membro relapso; 2) no plano interno, verificados os requisitos do efeito directo da
Directiva, as suas normas podem, mesmo na falta de transposição, ser invocadas
junto dos tribunais nacionais por qualquer interessado – no caso concreto da
protecção dos animais, devem-se considerar como titulares de legitimidade
processual para este efeito as associações zoófilas (artigo19º da Lei nº92/95
de 12 de Setembro); finalmente, e ainda no que se refere às consequências
jurídicas associadas à violação de legislação comunitária pelos
Estados-membros, importa ter presente o princípio geral da responsabilidade
extracontratual que pode fundamentar a instauração de acções de indemnização
junto dos tribunais nacionais com vista ao ressarcimento dos prejuízos
resultantes da infracção ao normativo comunitário, mormente a não transposição
de directivas.
Para Maria Luísa Duarte, as ligas defensoras dos direitos dos animais
têm legitimidade processual nesta iniciativa contenciosa e, concomitantemente,
o direito de reclamar a justa indemnização pelos danos infligidos à saúde e ao
bem-estar dos animais, (Maria Luísa
Duarte, Ob. cit., página 122).
O bem-estar dos animais foi
tomado em consideração, de forma expressa, pela primeira vez na Declaração nº24 anexa ao Tratado de Maastricht :
“A
Conferência convida o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão, bem como os
Estados-membros, a terem plenamente em conta as exigências em matéria de
bem-estar dos animais na elaboração e aplicação da legislação comunitária nos
domínios da política agrícola comum, dos transportes, do mercado interno e da
investigação”.
O passo seguinte foi dado com o Tratado de Amesterdão, através do Protocolo
relativo à protecção e ao bem-estar dos animais:
“AS ALTAS PARTES CONTRATANTES,
DESEJANDO garantir uma protecção reforçada e um maior respeito pelo bem-estar dos
animais, enquanto seres dotados de sensibilidade;
ACORDARAM nas disposições seguintes, que vêm anexas ao Tratado que institui a
Comunidade Europeia:
Na
definição e aplicação das políticas comunitárias nos domínios da agricultura,
dos transportes, do mercado interno e da investigação, a Comunidade e os
Estados-membros terão plenamente em conta as exigências em matéria de bem-estar
dos animais, respeitando simultaneamente as disposições legislativas e
administrativas e os costumes dos Estados-membros, nomeadamente em matéria de
ritos religiosos, tradições culturais e património regional.”
Ao contrário da Declaração, o Protocolo
tem uma força jurídica equivalente à dos Tratados e, por conseguinte, vincula
os Estados-membros e os órgãos competentes da União Europeia. Com o Protocolo
de Amesterdão, foi atingido um patamar de relevância jurídica no domínio da
protecção e do bem-estar dos animais. Esta protecção enquanto objectivo
adquiriu uma força específica e conformadora sobre a actuação futura do decisor
comunitário e do decisor nacional – em definitivo, foi ultrapassada a fase
generosa, mas juridicamente inócua, da proclamação política, equivalente à
expressão de meras intenções, (Maria
Luísa Duarte, Ob. cit., página
123).
Sem prejuízo da relevância
jurídica que se associa ao Protocolo de Amesterdão – seja como base jurídica
para a aprovação de novas regras comunitárias que garantam uma protecçao mais
elevada, seja como directriz de interpretação das normas comunitárias
aplicáveis – não podemos escamotear a importância de dois factores que mitigam o
seu alcance:
1)
O
próprio texto do Protocolo contém a semente da sua fragilidade normativa, com a
referência na parte final ao respeito da
legislação e costumes dos Estados-membros, com expressão os ritos
religiosos, tradições culturais e património – uma porta aberta à tolerância de
costumes bárbaros, como sejam os rituais que envolvam o sacrifício de animais
ou as touradas.
2)
No
seu Acórdão de 12 de Julho de 2001,
o Tribunal de Justiça tomou posição sobre o problema do enquadramento
comunitário do objectivo relativo à protecção e ao bem-estar dos animais (Caso
Jippes, Processo C-189/01). Interpretando o texto do Protocolo, o Juiz
Comunitário concluiu que “o objectivo de
velar pela protecção e pelo bem-estar dos animais não constitui um princípio
geral do Direito Europeu que se imponha, enquanto tal, às instituições e à
Comunidade” (União Europeia, actualmente). O Tribunal de Justiça abraça,
deste modo, uma concepção que relativiza o alcance do objectivo de garantir o
bem-estar dos animais, na medida em que só o considera atendível demonstrada a
sua compatibilidade com os fins prosseguidos pela Comunidade nos domínios
específicos da sua actividade (Maria Luísa Duarte, Ob. cit., página 124).
O Decreto-Lei nº28/96 de 2 de Abril, transpôs para a ordem interna a
Directiva nº93/11/CE, do Conselho, de 22 de Dezembro, relativa à protecção dos
animais no abate e na occisão. Dispõe o art.3º do Anexo A a esse Decreto-Lei :
Os
animais devem ser manuseados de forma a evitar qualquer excitação, dor ou
sofrimento durante o encaminhamento, estabulação, imobilização, atordoamento,
abate e occisão.
Os arts. 8º e 13º prevêem
controlos e inspecções conduzidos pelas autoridades locais e por representantes
da Comissão Europeia.
O Decreto-Lei nº129/98 de 18 de Setembro, transpôs, para o Direito
interno, a Directiva nº91/628/CEE de 19 de Novembro, com as alterações
introduzidas pela Directiva nº95/29/CE, ambas do Conselho. Trata-se de estabelecer
normas relativas à protecção dos animais durante o transporte.
O Decreto-Lei nº129/92 de 6 de Julho, transpôs para o Direito
interno a Directiva nº86/609/CEE do Conselho de 24 de Novembro relativa à
protecção dos animais utilizados para fins experimentais e outros fins
científicos.
Finalmente, o Decreto-Lei nº64/2000 de 22 de Abril,
transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva nº98/58/CE do Conselho,
relativa à protecção mínima dos animais nas explorações pecuárias, enquanto o Decreto-Lei nº276/2001 de 17 de
Outubro, estabeleceu normas legais tendentes a pôr em aplicação, em Portugal, a
Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia, aprovando um
regime especial para a detenção de animais potencialmente perigosos.
No quadro actual da União
Europeia, não se afigura juridicamente defensável um nível de protecção
qualitativamente superior.
Cumpre recordar que o Direito da
União Europeia é a expressão da vontade soberana dos Estados-membros. Os órgãos
comunitários de decisão normativa (o Conselho, a Comissão e o Parlamento
Europeu) só podem aprovar disposições reguladoras nos domínios definidos pelo
Tratado de Lisboa como sendo de competência comunitária (artigo 5º do Tratado
da União Europeia).
Por um lado, mesmo nos casos em
que o decisor comunitário dispõe de competência, deve esta ser exercida de
acordo com o princípio da subsidiariedade. A intervenção reguladora da União
Europeia apenas se justifica nos casos em que o legislador nacional não pode ou
não quer promover a realização dos objectivos da União Europeia.
No caso concreto do bem-estar dos
animais, a primeira linha, e a mais importante, de construção de um edifício
completo e coerente de protecção situa-se na ordem jurídica dos
Estados-membros.
A auto-justificação do objectivo
relativo à protecção e ao bem-estar dos animais, como fundamento de uma ética
de responsabilidade do Homem na sua relação com os animais, só é possível no
quadro nacional. No plano da União Europeia a protecção dos animais acaba por
ter uma expressão ancilar e instrumental (Maria
Luísa Duarte, Ob. cit.,página
126).
Na verdade, e é esta a nota
conclusiva que curamos de vincar, a importância reveladora e conformadora do
Direito da União Europeia não depende de exercícios retóricos de proclamação
política; depende mais da vontade do decisor nacional no sentido de respeitar o
patamar mínimo de protecção da saúde e do bem-estar dos animais definido pelas
regras europeias, no quadro mais alargado de uma ética de responsabilização do
Homem pelo destino que reserva aos animais.
V.
A protecção dos animais no quadro
do Direito Português
Na tradição romana, o animal –
particularmente o animal dotado de um sistema nervoso – era considerado coisa.
A própria natureza das coisas, contudo, diz-nos que o animal não é idêntico à
planta ou ao mineral já que tem, pelo menos, a faculdade de se mover por si:
tradicionalmente, constituiria uma categoria especial dentro dos móveis: um
semovente, (Menezes Cordeiro, Ob. cit., página 217).
O Código Civil não dedica
preceitos aos animais, excepto a propósito da ocupação e noutros domínios
periféricos. Tão-pouco existe uma norma destinada a protegê-los, com excepção
do art.1124º que, todavia, tem uma estrutura de pura protecção contratual dos
interesses do dono do animal (Menezes Cordeiro,
Ob. cit., página 220).
De referir, a título de exemplo,
que o BGB alemão foi revisto, em 1990, de modo a consignar, de uma forma
expressa, que os animais não são considerados coisas.
A Lei 92/95 de12 de Setembro
traduz-se numa lei-quadro, consagrando a protecção da vida e integridade física
dos animais. Com esta lei, o Estado sintetiza um conjunto de valores dominantes
na comunidade jurídica internacional e nacional no que respeita a esta matéria
e que será melhor analisada abaixo.
O fim da Lei nº92/95 não assenta
na titularidade de direitos por parte dos animais, mas de os proteger contra
violências cruéis ou desumanas ou gratuitas, para as quais não exista
justificação ou tradição cultural bastante, isto é, no confronto de meios e
fins ao serviço do homem num quadro de razoabilidade e proporcionalidade.
(Acórdão STJ 19.10.2004)
Na doutrina, Sandra Costa Ramos nega a existência de direitos dos animais, mas
incumbe os homens de “especiais deveres
para com eles” (Sandra Costa Ramos,
“A protecção dos direitos dos animais”
in Estudos em homenagem ao Conselheiro J. M. Cardoso da Costa, Coimbra, 2003,
página 789).
VI.
A configuração dos animais ao
nível do Direito Civil
Vimos, supra, que os vários ordenamentos
jurídicos têm, e bem quanto a nós, prosseguido um caminho no sentido de não
considerar os animais como “coisas” muito embora na doutrina e jurisprudência
portuguesa tal conclusão não seja, ainda, pacífica (vide Acórdão STJ 19/10/2004 e Paulo
Mota Pinto, Teoria Geral do Direito
Civil, Coimbra Editora, 2005, página 343, nota 397). Resta questionar,
então o que são? Não se vislumbra que possam ser equiparados às pessoas: em
sentido jurídico, só o ser racional pode ser destinatário de deveres – e, logo,
de direitos (Menezes Cordeiro, Ob. cit., página 225). A exacta
qualificação dos animais fica, pois, em aberto, sendo apenas seguro que
disfrutam de protecção.
Quem sabe se não será altura de
pôr em causa a estrita dicotomia pessoa/coisa… Podemos, apesar de tudo, avançar
que não nos repugna a consideração dos animais como uma coisa suis generis, isto
é, uma categoria especial de objectos de direito. Já os romanos usavam a
designação res em oposição às personae no sentido de objectos de
direito, não com a conotação de objecto inanimado, como têm as tradições
modernas. Esta classificação permite justificar que o legislador tenha tanta
preocupação com os animais (menos do que deveria, para alguns) e estabeleça,
inúmeras vezes, regimes autónomos (Menezes
Cordeiro, Ob. cit., página 226).
VII.
A protecção dos animais no domínio
penal
Entre nós, o Projecto da Comissão
do Código Penal Portuguez (Código Penal de D. Pedro V) de finais do 1861
constitui o primeiro ensaio de protecção dos animais na legislação portuguesa.
Aí se previa que “a destruição, por qualquer modo, de animal doméstico” seria
punida com pena de prisão, considerando-se como agravantes da pena as
circunstâncias, não cumulativas, de o facto ter sido praticado em propriedade
do dono do animal, por envenenamento e a “importância do animal em si, em
relação ao fim que é destinado e em relação ao ofendido”.
A primeira lei relacionada com a
protecção dos animais data de 1919: o Decreto nº5650 de 10 de Maio que nos
cinco artigos considera punível “toda a violência contra animais”, incorrendo o
seu autor numa pena de multa que em caso de reincidência seria passível de se
converter em pena de prisão. Estabelece ainda a legitimidade processual das
associações protectoras dos animais para estarem em juízo nos processos
decorrentes da aplicação desta lei.
O decreto nº5864 de 12 de Junho
de 1919 regulamenta o anterior e confere a natureza de crime público a esta
infracção. O Decreto nº15982 de 21 de Agosto de 1928 proibiu o uso de aguilhão
ou de qualquer outro instrumento perfurante na condução de animais, quer em
transporte, quer em trabalho.
Actualmente, os animais são
considerados coisas para efeitos do crime de dano ou furto, previsto e punido
no Código Penal nos artigos 203º e 212º do Código Penal.
O artigo 281º do Código Penal
dispõe que :
1. Quem:
a) Difundir
doença, praga, planta ou animal nocivo; ou
b) Manipular,
fabricar ou produzir, importar armazenar, ou puser à venda ou em circulação,
alimentos ou forragens destinados a animais domésticos alheios;
E
criar deste modo perigo de dano a número considerável de animais alheios,
domésticos ou úteis ao homem, (…) é punido com pena de prisão até dois anos ou
com pena de multa.
Ora, vemos que o Código Penal
reserva um único artigo para a lesão de animais e mesmo assim, só os animais
domésticos e em número considerável. Resulta daqui, por isso, que apenas neste
caso se criminaliza a conduta.
VIII.
A lei de protecção dos animais
Aprovada pela Lei nº92/95, de 12
de Setembro, a Lei de protecção aos animais é um diploma sintético, com dez
artigos, ordenados em três capítulos:
Capítulo
I – Princípios gerais – artigo 1º
Capítulo
II – Comércio e espectáculos com animais – artigos 2º a 4º
Capítulo
III – Eliminação e identificação de animais pelas Câmaras Municipais – artigos
5º a 10º
Os princípios gerais dão corpo a
“medidas gerais de protecção” nesse sentido, é sugestivo o artigo 1º, cujo
número 1 dispõe:
São
proibidas todas as violências injustificadas contra animais considerando-se
como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o
sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal.
Analisando o art. 1 nº1 do
diploma, vemos que o legislador procedeu a uma ponderação de valores em causa,
a saber, o respeito pela vida e integridade física dos animais por um lado, e o
desenvolvimento científico/ tradições seculares, por outro.
O critério do legislador não foi
o do acto agressivo, mas o do fundamento para tal acto, isto é, saber se é um
fundamento merecedor de tutela da lei ou não.
Todos os actos que atinjam a vida
ou a integridade física dos animais e lhe provoquem sofrimento cruel e
prolongado ou lesões graves são proibidos.
A licitude depende da necessidade de serem praticados esses
actos. É da interpretação deste conceito indeterminado, que se traduz em
definir o seu conteúdo, que se aquilatará da justificação do acto ou não.
Cabe ao intérprete, em cada
momento, descortinar quais os valores a proteger. E é em face desses valores
que se saberá ou se decidirá da necessidade da violação da vida e da
integridade física do animal. E é fundamental aferir do juízo de
inevitabilidade, isto é, questionar se não existirão meios técnicos muito
eficazes que substituem os animais (Acórdão
TRG de 29.10.2003).
O número 2 estabelece um dever de
socorro, na medida do possível, em relação a animais doentes, feridos ou em
perigo, enquanto o número 3 elenca proibições de maus tratos em termos
claramente exemplificativos.
As excepções do número 3
justificam-se, porque o legislador considera, aqui, necessária a utilização de
animais, em que é posta em causa a vida e a integridade física, para a
realização dos seus fins. A actividade da caça é excepcional, Lei nº173/99 de
21 de Setembro, tal como a actividade venatória, Decreto-Lei nº338/2001 de 26
de Dezembro.
O número 4 prevê medidas de
protecção para animais em perigo de extinção: nomeadamente para preservação dos
ecossistemas em que se enquadrem.
O comércio e espectáculos com
animais está subordinado a diversas autorizações administrativas :
- Em geral, das Câmaras
Municipais, que devem verificar se “as condições previstas na lei destinadas a
assegurar o bem-estar e a sanidade dos animais serão cumpridas”;
- Da Direcção-Geral dos
espectáculos e Municípios respectivos, tratando-se de espectáculo comercial;
O artigo 3º nº2 autoriza touradas
nos termos regulamentares. Menezes
Cordeiro defende que este preceito “está
em contradição com o artigo 1º nº1 da Lei de Protecção aos Animais. Se fizermos
uma projecção objectiva e razoável a partir do que tem sido a suavização dos
costumes nos últimos dois séculos, não teremos dúvidas em concluir : as
touradas serão abolidas ou deverão evoluir para manifestações culturais de tipo
não cruento”.
O artigo 4º permite a proibição
de entrada no País de animais feridos, isto é, “…vertebrados que exibam feridas aparentemente provocadas por acções
contrárias à legislação sobre protecção dos animais”.
As Câmaras devem promover a
reprodução planificada dos animais – artigo 6º nº1. Sendo acompanhados e devidamente
acondicionados e salvo motivo atendível, os animais de companhia têm acesso aos
transportes públicos – artigo 7º.
As associações zoófilas podem
requerer a todas as autoridades e tribunais medidas preventivas e urgentes
destinadas a evitar violações em curso ou iminentes, podendo constituir-se
assistentes em todos os processos originados ou relacionados com a violação da
presente lei.
As sanções pela violação da LPA
aguarda a regulamentação prevista no seu artigo 9º.
Além da LPA, diversos outros
diplomas protegem determinadas espécies. Tal o caso do lobo ibérico, tutelado
pela Lei nº90/88 de 13 de Agosto, regulamentada pelo Decreto-Lei nº139/90 de 27
de Abril. Os animais selvagens, necrófagos e predadores são visados pelo
Decreto-Lei nº204/90 de 20 de Junho. O Despacho Normativo nº 15/91 de 7 de
Janeiro, proíbe a importação de produtos obtidos de focas-bebés, invocando
expressamente a forma cruel por que são caçadas. As aves selvagens obtiveram
medidas de protecção referidas no Decreto-Lei nº75/91 de 14 de Fevereiro.
IX.
O desporto e a protecção dos
animais
No âmbito da relação de tensão
entre ambiente e desporto, há um segmento que tem merecido alguma atenção dos
nossos tribunais e que se prende com a tutela de certas espécies
tradicionalmente utilizadas na prática de actividades desportivas. Poderia
ser-se tentado a pensar na caça (desportiva); todavia, conforme realça Sérvulo Correia, actualmente “A própria actividade cinegética deixa de ser
encarada apenas como um modo lúdico de esforço desportivo e de ocupação de res
nullius para ser enquadrada sob regras de exploração ordenada de recursos
naturais inspiradas pelos princípios da sustentabilidade e da conservação da
diversidade biológica e genética”(José
Manuel Sérvulo Correia, Zonas de caça
associativa e consentimento dos proprietários, in Estudos de homenagem ao
Prof. Doutor Pedro Soares Martinez, I, Coimbra, 2000, pp. 753 e seguintes,
776). Assim, “desde que praticada nos
períodos prescritos pelo ordenamento, a caça revela-se um factor regulador do
equilíbrio do ecossistema” (Carla
Amado Gomes, “Ambiente e desporto :
ligações perigosas: a propósito do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de
25 de Setembro de 2007”, in Desporto e Direito, nº17, 2009, p.223).
Já a prática de tiro a alvos
vivos, nomeadamente pombos, gera menos consenso e tem merecido posições
contraditórias na jurisprudência.
Há fundamentalmente duas atitudes
quanto ao tiro aos pombos : a dos que julgam a sua prática ilícita em face da
Lei da protecção dos animais – LPA - (Lei nº92/95 de 12 de Setembro, com as
alterações introduzidas pela Lei nº19/2002 de 31 de Julho, motivadas pela
questão da licitude da prática dos “touros de morte”, no qual se enfrentavam os
valores do ambiente e da cultura.), considerando-a uma crueldade desnecessária
contra os animais (artigo 1º nº1 da LPA); e a dos que não vislumbram nessa
prática qualquer ilicitude, ou por assimilarem os animais a coisas, totalmente
na disposição do seu dono; ou por julgarem a prática necessária; ou por
reconhecerem a este “desporto” a cobertura de uma tradição cultural, excepcionando-o
da aplicação da Lei 92/95 (artigo 3º, na redacção dada pela Lei nº19/2002).
1) A
cisão da jurisprudência no caso do tiro aos pombos
A cisão da jurisprudência quanto
a este assunto foi detectada por Bacelar Gouveia e, mais recentemente por Dias
Pereira em anotação a dois acórdãos contraditórios, sendo certo que um deles,
no sentido da admissibilidade da prática de tiro aos pombos, provém do Supremo
Tribunal de Justiça.
Ambos os autores seguem o
entendimento que vislumbra neste desporto uma prática ilícita, avançando
argumentos que importa referir:
a)
Interpretação conforme à Constituição
Bacelar
Gouveia refere
que “este texto constitucional contém uma
orientação a favor da Natureza, que não pode ser olvidada. Ou seja : na sua
actividade, o legislador deve assumir o caminho de beneficiar a Natureza e de a
defender contra a actividade agressiva do Homem” (Jorge Bacelar Gouveia, A
prática de tiro aos pombos, a nova Lei de protecção dos animais e a
Constituição Portuguesa, in Novos Estudos de Direito Público, Lisboa, 2002,
página 263).
Este entendimento permite
ajudar-nos na interpretação do nº1 do artigo 1º da Lei nº92/95, mas
concretamente através da “consideração do
conceito de “necessidade” como sendo um conceito que, não obstante suscitando
hesitações interpretativas, implica, desta óptica e dentro dos respectivos
limites literais, a protecção dos animais contra as pessoas que os pretendem
aniquilar, com isto se considerando a prática de tiro aos pombos não
justificada” (André Dias Pereira, Ob.
cit., página 50).
b)
O sentido axiológico.normativo do direito internacional: a Declaração Universal
dos Direitos do Animal
A nossa CRP é “amiga do direito
internacional” como ressalta do artigo 8º e da cláusula aberta do artigo 16º,
impondo-se-lhe não apenas o ius cogens,
mas ainda o Direito Internacional Geral ou Comum, de acordo com a recepção
automática no nº1 do artigo 8º.
A Declaração Universal dos
Direitos do Animal é parte integrante do Direito português, como supra
referido, pelo que devemos interpretar a Lei nº92/95 do modo que mais respeite
os comandos normativos dessa importante Declaração. Deste complexo normativo
resulta que a integridade física e a vida do animal merecem a protecção do
Direito. “E qualquer Estado que faça
parte da comunidade civilizada das nações, e se queira reger por padrões
ético-normativos de conduta condizentes com o Direito Internacional Geral ou
comum deve adaptar a sua ordem jurídica àquelas prescrições” (André Dias Pereira, Ob. cit., página 51).
Ora, como refere Bacelar Gouveia, “olhando para a realidade do tiro aos pombos, vemos que este direito à
integridade física das aves usadas nessas competições pode, efectivamente, ser
posto em causa.” Por outro lado, “a
prática de tiro aos pombos, não podendo ser justificada por qualquer razão
ponderosa e que possa ser atendível, igualmente constitui um “biocídio”,
porquanto consiste na morte de animais sem que essa prática seja assistida de
qualquer motivo de necessidade que a determine” (Jorge Bacelar Gouveia, Ob. cit., página 265).
Ora, se dúvidas houvesse na
interpretação da LPA, por referência à intencionalidade axiológico-normativa do
Direito Internacional Geral ou Comum, plasmado na Declaração Universal dos
Direitos do Animal, veríamos que a prática de tiro aos pombos configura um
grave e desnecessário atentado à integridade física e à vida desses animais.
c)
Interpretação conforme ao Direito da União Europeia
André Dias Pereira realça o facto
de que a LPA deve ser interpretada de acordo com o Protocolo relativo à
protecção e ao bem-estar dos animais.
“Um dos princípios fundamentais do Direito Europeu que tem implicações
decisivas na metodologia de interpretação jurídica – de resto bem conhecido na
nossa jurisprudência – é o chamado princípio da interpretação conforme, o qual
se enquadra no princípio da efectividade (e cooperação leal)”, (André Dias Pereira, Ob. cit., página 51).
“Da análise deste Protocolo resultam dois comandos cristalinos : 1) o
respeito pelo bem-estar dos animais, enquanto seres dotados de sensibilidade
(…) é um dos valores preponderantes que se impõe à Comunidade e aos
Estados-membros; 2) este Protocolo respeita, simultaneamente as disposições
legislativas e administrativas e os costumes dos Estados-membros, nomeadamente
em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património regional, na
definição e aplicação das políticas comunitárias nos domínios da agricultura,
dos transportes, do mercado interno e da investigação” (André Dias Pereira, Ob. cit., página 52).
Assim, podemos concluir que o
artigo 1º nº1 da Lei nº 92/95 deve ser interpretada da forma que melhor garanta
uma protecção reforçada e um maior respeito pelo bem-estar dos animais,
enquanto seres dotados de sensibilidade.
O “tiro aos pombos” sendo uma
clara violação do respeito pelo bem-estar dos animais, enquanto seres dotados
de sensibilidade, não deve ser permitido, de acordo com uma interpretação
conforme a este Protocolo.
d)Interpretação declarativa do
artigo 1º nº1 da Lei nº92/95
Nos termos do artigo 1º nº1 da
LPA existe uma cláusula geral de proibição de violências injustificadas sobre
os animais. E as violências injustificadas consistem na prática de actividades
que causem, sem necessidade, a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves
lesões aos animais.
É, manifestamente, o que se
verifica no caso do “tiro aos pombos”!
O escopo dessas mortes,
sofrimento cruel e prolongado e lesões graves não é protegido por lei. Nem visa
a alimentação nem o equilíbrio do ecossistema, nem a saúde pública; visa apenas
a satisfação de actividades lúdicas: o divertimento ou o desporto. Ora esse
divertimento e esse desporto podem ser feitos com igual qualidade recorrendo a
artefactos técnicos (pratos e hélices). Assim sendo, não se poderá invocar a
“tradição cultural” que a existir deveria ter sido expressamente salvaguardada
na lei, tal como aconteceu com outras actividades (arte equestre, tourada,
caça).
“A substituição de animais vivos por alvos artificiais não deturpa o
desporto nem lhe retira eficácia nem realização de objectivos. A competição e a
aferição da destreza e o acréscimo de gozo ou divertimento das pessoas são
absolutamente garantidos pelo tiro a alvos inanimados. O tiro às hélices apenas
não satisfaz o perverso sadismo de infligir violência, sofrimento e morte a
animais para esse efeito criados. A lei portuguesa não aceita que essa seja uma
tradição cultural digna de um Estado europeu do século XXI” (André Dias
Pereira, Ob. cit., página 53).
Este foi o entendimento que a
decisão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29 de Outubro de 2003 deixou
transparecer.
2) A
posição do STJ no caso do tiro aos pombos
O STJ perfilha a doutrina segundo
a qual os animais não são titulares de direitos, antes as pessoas têm deveres
para com eles. Acrescenta mesmo que as normas, o que visam verdadeiramente não
é proteger os animais não humanos, mas sim a “comunidade de pessoas face ao
desconforto de terem de percepcionar a desumanidade de algumas”. Trata-se de
uma perspectiva claramente antropocêntrica.
Já antes, em Acórdão de 17 de
Dezembro de 2002, o STJ tivera oportunidade de se manifestar em sentido
idêntico, conforme dá notícia Alexandra Pessanha (Alexandra Pessanha, Anotação à decisão publicada na Desporto
& Direito, nº1, 2003, pp. 131 e seguintes).
Afirma, ainda, o Supremo Tribunal
de Justiça que os animais são coisas móveis: “Efectivamente se compararmos com outros países, o nosso ordenamento
jurídico é ainda relativamente débil no que respeita à protecção jurídica dos
animais e muitos civilistas entendem que o animal é uma res”.
Sobre a nossa interpretação
relativamente a esta questão, remetemos para o que dissemos supra.
Mais, os defensores da licitude
do tiro aos pombos referem quem o ordenamento jurídico prevê lugares paralelos
em que autoriza a morte, o sofrimento cruel e prolongado e/ou graves lesões dos
animais. Ora, trata-se de excepções à regra e que foram previstos na lei por
respeito a antigas tradições da cultura portuguesa ou para permitir o avanço da
medicina e da ciência e, sublinhe-se, a LPA distingue claramente estas
actividades como excepções à proibição geral do artigo 1º nº1, o que,
visivelmente, não acontece com o caso do tiro aos pombos.
Recentemente o Decreto-Lei
nº202/2004 de 18 de Agosto veio autorizar a caça aos pombos, incluindo a
prática de largadas. Mas, note-se, uma coisa é a caça, especialmente regulada
em lei e que visa respeitar certos interesses que vão para além do que de uma pretensa
tradição cultural; outra, muito diferente, no plano axiológico-normativo, é a
prática de tiro a alvos vivos.
O Supremo Tribunal de Justiça
invoca o facto de que a lei admite as largadas nos campos de treinos de caça.
Sem dúvida que no plano descritivo existe semelhança, mas estas largadas
justificam-se na medida em que permitem apurar a perícia dos caçadores ou a
aprendizagem dessa perigosa actividade. “Trata-se
de uma actividade instrumental de uma prática excepcionalmente lícita, pelo que
não existe equivalência normativa nas situações, não podendo ser aplicado o
regime jurídico da situação regulada à situação a regular”, como notou o
Tribunal da Relação de Guimarães.
Os defensores da licitude desta
prática avançam que, também na pesca desportiva os peixes são sujeitos a um
sofrimento prolongado. Acontece, uma vez mais, que a que a analogia das
situações não existe. Em primeiro lugar, não existe alternativa possível à
utilização dos peixes, o que não é o caso no tiro aos pombos. Para além disso,
ao longo da sua vida, o peixe permanece no seu meio natural. No caso dos pombos
há sofrimento prévio ao abate.
Um outro argumento por vezes
utilizado na defesa do tiro aos pombos, já em sede de análise da cláusula geral
de proibição do artigo 1º nº1, é o de que os pombos têm uma morte rápida, sem
sofrimento cruel e prolongado. Contudo, é do conhecimento comum que, quando um
animal (seja ave, seja mamífero ou outro) é atingido por uma bala de chumbo e
não morre imediatamente, fica em agonia extrema, em situação de sofrimento
cruel e prolongado e com lesões graves. É por demais sabido que muitos desses
animais morrem após muitas horas de sofrimento ou são mortos no final do dia.
Na verdade, é muito comum que esses animais não tenham morte instantânea,
ficando a agonizar até morrerem.
Acrescentam, ainda, a ideia de
que “os pombos se reproduzem facilmente, pelo que não há risco da sua extinção
e a própria prática constitui um factor de crescimento da espécie”. Ora, de
tudo quanto se disse resulta que os animais merecem respeito enquanto bens em
si mesmo e não podem ser instrumentalizados deste modo.
É referido que o tiro aos pombos
é necessário porque não é substituível por outro meio e faz parte da tradição
cultural portuguesa. Como referiremos adiante, isto não é verdade.
Por fim, os defensores da
licitude do tiro aos pombos referem que a Federação Portuguesa de Tiro goza de
estatuto de utilidade pública desportiva.
Dizer que o tiro aos pombos é
lícito porque quem (ilicitamente) organiza essas práticas é uma instituição
reconhecida como de utilidade pública desportiva prova demais. O facto de uma
entidade validamente existir, não implica que todas as actividades em que se
envolva estejam a coberto da lei ou não impede que lei posterior revogue
parcialmente o seu âmbito de competências e actividades.
Com a devida vénia, não podemos
subscrever tal entendimento. Os argumentos avançados acima sobre a ilicitude
desta prática esgotam praticamente o repertório de razões que sustentam a
inadmissibilidade da prática – para eles remetemos.
De facto, André Dias Pereira ressalta a desnecessidade do uso de alvos vivos
para exercitar a perícia dos atiradores (que podem valer-se de pratos) e a
violência injustificada que os animais padecem (aos pombos são arrancadas as
penas da cauda, a fim de lhes vedar o sentido de orientação e induzir um voo
errático), aspectos tutelados pelo nº1 da LPA.
É manifesta a substituibilidade
dos alvos vivos por alvos estáticos, com idêntico (se não igual) nível de
fruição da actividade pelo atirador. E é inquestionável a violência exercida
sobre os animais, bem como a total ausência de justificação por inexistência de
valor superior relevante.
Nesta sequência, sublinhe-se que
a alteração sofrida pela LPA em 2002 (com filiação directa no “Caso Barrancos”)
só realça a inaplicabilidade da “excepção cultural” a realidades como o tiro
aos pombos. O novo nº4 do artigo 3º da LPA subtrai à alçada desta lei
(nomeadamente da cláusula geral do artigo 1º nº1) “tradições locais, que se
tenham mantido de forma ininterrupta pelo menos nos 50 anos anteriores à
entrada em vigor do presente diploma, como expressão de cultura popular, nos
dias em que o evento histórico se realize”. Ora, nem o tiro aos pombos
corporiza qualquer “expressão de cultura popular”, nem – mesmo que assim fosse
– a sua prática foi “pública e pacífica” até 2002, dadas as muitas reticências
registadas na jurisprudência.
O artigo 66º nº2 g) da CRP apela
à pedagogia para a interiorização social dos valores ambientais e à promoção do
respeito pelos valores do ambiente. Não nos parece que, ressalvadas as
“excepções culturais” (no âmbito das quais cumpre resolver um conflito entre
ambiente e cultura, opondo os valores ínsitos nos artigos 66º e 78º da CRP),
haja espaço para a perpetuação de práticas (culturais, recreativas, desportivas
ou outras) que minam a sedimentação de uma consciência ambiental no seio da
população. As normas que confiram esteio a tais práticas devem, por isso,
ter-se por inconstitucionais, quando tais actividades sejam desenvolvidas à
margem de qualquer quadro normativo, deverão ser punidas, a título
contraordenacional – embora, malfadadamente, esta dimensão punitiva se veja
obstaculizada pelo facto de a LPA não ter ainda suscitado, da parte do
legislador, a concretização, por lei especial, da injunção constante do artigo
9º.
Finalmente, no plano ético, é de
expressar o pesar pela manutenção de práticas que, desnecessária e
barbaramente, atentam contra o bem-estar dos animais (Carla Amado Gomes, Ob. cit., página
226).
Não enveredamos, sublinhe-se,
pela corrente tendente ao reconhecimento de direitos aos animais, antes
reconhecemos que a tutela das espécies animais não pode ignorar a sua
funcionalização a objectivos da espécie humana (alimentação, investigação
científica, educação, memória colectiva), e admitimos que só o risco de
extinção justifica a ingerência máxima de impossibilidade de utilização ou
contacto. Todavia, fazendo nossas as palavras de Menezes Cordeiro, não temos dúvidas em afirmar que “o respeito pela vida é uma decorrência ética
do respeito pelo seu semelhante(…). O ser humano sabe que o animal pode sofrer,
sabe fazê-lo sofrer; pode evitar fazê-lo. A sabedoria dá-lhe responsabilidade”
(Menezes Cordeiro, Ob. cit., página 214).
Concordamos, deste modo, com Carla Amado Gomes quando defende que “qualquer prática desportiva que sacrifique
desnecessariamente o bem-estar do animal à expressão de personalidade humana
corporizada na prática de desporto deve ser erradicada por ilegal e
inconstitucional” (Carla Amado Gomes,
Ob. cit., página 227).
3) Protecção
dos animais e desportos motorizados no meio natural
O Acórdão da Relação de Coimbra
de 25 de Setembro de 2007 só indirectamente pode considerar-se um exemplo da
absorção dos valores ambientais pelos nossos Tribunais. Na verdade, o aresto
tem como ponto de partida e de chegada uma perspectiva puramente
patrimonialista : a do proprietário/criador de coelhos que viu sucumbir os seus
animais na sequência da realização de uma prova envolvendo veículos
todo-o-terreno, a qual lhes provocou uma elevação mortal do nível de stress
(confirmada por veterinário chamado ao local).
O criador sofreu um dano relacionado,
causalmente, com o ruído provocado pelos veículos motorizados integrados na
prova, a qual foi considerada uma actividade perigosa, subsumível na norma
contida no nº2 do artigo 493º do Código Civil. Este preceito estabelece uma
presunção de culpa, impondo o ónus da prova do emprego de todas as diligências
cabíveis para evitar o dano ao lesante – e a comissão organizadora da prova não
conseguiu fazer tal demonstração em Tribunal.
Não está em causa, no litígio,
apreciar os danos provocados no contexto natural em que a prova se realizou. Os
eventuais efeitos da elevada poluição sonora produzida durante o evento, bem como
os danos decorrentes do derrame de combustível para o solo e a emissão de
monóxido de carbono para o ar, relativamente à integridade física e psíquica de
espécies de animais residentes na zona, não podem ser apreciados. Falta-lhes
voz – e a prova do dano. Só autores populares – ou o Ministério Público –
poderiam denunciar tais situações lesivas (se significativas), uma vez que não
se trataria já de afectação da esfera jurídica de um proprietário, mas do
interesse de fruição de um bem colectivo pelos membros da comunidade.
A análise do Acórdão desperta
algumas questões:
a)
Caso
a acçao tivesse sido movida por uma Associação ambientalista e o dano se
traduzisse na morte de umas dezenas de esquilos, teria o Tribunal apelado ao
preceito referido, que menciona “danos a outrem”?
Na
doutrina, Carla Amado Gomes refere
que “por um lado, pode dizer-se que a
expressão utilizada pelo artigo 493º nº2 do CC, indicia um dano individualizado
e uma situação de alteridade – quem provoca o dano é uma entidade diversa da
que o sofre; logo, danos difusos, pulverizados pela comunidade, que quem
provoca também sofre, estariam fora do seu âmbito. Por outro lado, uma leitura
actualista do preceito poderia justificar o seu aproveitamento em sede
ambiental, na medida em que a inversão do ónus da prova que propicia é, na
maioria das vezes, conditio sine qua non para lograr sucesso em acção de
efectivação da responsabilidade contra poluidores. (…) em sede específica de
dano ecológico e só deste, o artigo 493º nº2 do CC não pode colmatar a falha
que a Lei de Bases do Ambiente (Lei de 11/87 de 7 de Abril (=LBA)) deixou em aberto e que, na falta de
intervenção legislativa, só uma construção doutrinal e jurisprudencial permite
ultrapassar.”
Com
efeito, Ana Perestrelo de Oliveira
alerta para o facto da complexidade probatória de grande parte dos litígios que
envolvem danos gerados por emissões lesivas da qualidade de componentes
ambientais inibir os autores populares de fazer prova do dano, por ausência de
informação suficiente para determinar a causalidade (e, bem assim, como para
dilucidar problemas de poluição difusa, de concausalidade de efeitos lesivos,
de dilação temporal entre o facto e o dano), (Ana Perestrelo de Oliveira, Causalidade
e imputação na responsabilidade civil ambiental, Lisboa, 2007, páginas 92 e
93).
Para
Carla Amado Gomes, o princípio da
prevenção parece ser a alavanca necessária para promover esta inversão, mas
seria da maior relevância e coerência que a LBA tivesse inscrito esta solução
nos artigos dedicados à responsabilidade subjectiva e objectiva (artigos 40º e
41º, respectivamente), (Carla Amado
Gomes, “Risco e modificação do acto
autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente”, Lisboa,
2007, página 409).
b)
A
admitir a ocorrência de um dano ecológico e a sua imputação à comissão organizadora
da prova, qual a consequência da acção de efectivação da responsabilidade?
Antes de mais, cumpre recordar
que o nosso ordenamento jurídico não fazia a destrinça, até ao surgimento do
Decreto-Lei nº147/2008, de 29 de Julho, do dano ambiental do dano
pessoal/patrimonial. Esta ideia é expressamente assumida pelo legislador no
Preâmbulo do diploma :
“Durante
muitos anos a problemática da responsabilidade ambiental foi considerada na
perspectiva do dano causado às pessoas e às coisas. O problema central
consistia na reparação dos danos subsequentes às perturbações ambientais – ou
seja, os danos sofridos por determinada pessoa nos seus bens jurídicos da
personalidade ou nos seus bens patrimoniais como consequência da contaminação
do ambiente.
Com
o tempo, todavia, a progressiva consolidação do Estado de direito ambiental
determinou a autonomização de um novo conceito de danos causados à natureza em
si, ao património natural e aos fundamentos naturais da vida. (…) Assim, existe
dano ecológico quando um bem jurídico ecológico é perturbado, ou quando um
determinado estado-dever de um componente do ambiente é alterado
negativamente.”
Esta ausência resultava do acervo
legislativo que tínhamos. Por um lado, a nossa lei fundamental não distinguia
(nem distingue) as duas realidades, por outro a Lei de Bases do Ambiente
revelava (e revela) uma perspectiva individualista ou grupal do dano ambiental
(artigo 40º nº4 e5). Por fim, a Lei nº83/95 de 31 de Agosto ignora a diferença
radical entre interesses individuais homogéneos e interesses de fruição de bens
colectivos, reduzindo o regime de indemnização aos primeiros (artigo 22º nº2),
(José Sendim, “Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos”, Cadernos CEDOUA,
Almedina p. 21)
A falta de identificação clara do
dano ambiental implicava que este só poderia ser ressarcido caso resultasse de
um facto lesivo de interesses individuais cujo titular movesse uma acção
inibitória contra o lesante, a qual pusesse fim à produção da emissão
prejudicial para pessoas e bens naturais. O dano a ressarcir seria sempre e
apenas o individual, não o colectivo.
A tutela era meramente reflexa e
não visava a reconstituição do status quo
ante, ou similar, ou mesmo a fixação de medidas compensatórias.
Para Carla Amado Gomes, “em
coerência com o objectivo constitucional de tutela ambiental, podia defender-se
que, apesar da equivocidade das normas do ordenamento jusambiental, a autores
populares (e ao Ministério Público) era admissível a propositura de acções
inibitórias, precedidas de providências cautelares e a dedução de pedidos
indemnizatórios por danos ecológicos contra os lesantes – os quais se
traduziriam, preferencialmente, na reconstituição da situação anterior à
ocorrência do dano (artigo 48º nº1 da LBA).” Recorde-se, como decisão exemplar,
a proferida no Caso das Cegonhas Brancas – Sentença do Tribunal Judicial de
Coruche, de 23 de Fevereiro de 1990, em que por iniciativa do Ministério
Público, uma proprietária rural foi condenada a levantar estacas a fim de
substituir as árvores que serviam de poiso e local de nidificação de cegonhas
brancas.
Ou, acrescenta a autora, “não sendo a reconstituição da situação
anterior possível, avançar-se-ia então para a fixação da indemnização
pecuniária (artigo 48º nº3 da LBA); mas com base em que critérios?(…) E a favor
de quem? Estas perguntas ficavam sem resposta”.
A Directiva 2004/35/CE do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril, sobre responsabilidade por
prevenção e reparação do dano ecológico, constituí um importante factor de
clarificação neste contexto – embora não resolva todos os problemas. A maior
virtude da Directiva é a autonomização do dano ecológico do dano ambiental
(artigo 2º nº1: danos causados a espécies protegidas mas não a outras espécies,
bens ambientais naturais, como qualificados pela LBA, nos artigos 6º e
seguintes). No entanto, o âmbito subjectivo dos lesantes (e, reflexamente, o
âmbito objectivo da Directiva) é consideravelmente reduzido, nos termos do
artigo 3º nº1 : danos ecológicos são só os produzidos em resultado de alguma
das actividades descritas no Anexo III, sendo certo que, no que concerne a
espécies e habitats (protegidos pelas Directivas da Rede Natura e só esses), o
dano pode ter origem em qualquer actividade, mas deve ser provocado com culpa.
Estender a noção de dano ecológico fica, naturalmente, ao critério dos
Estados-Membros (artigo 16º nº1).
Deve sublinhar-se que a directiva
exclui a atribuição de quantias aos particulares ou associações que denunciarem
a situação, a título de reparação do dano (artigo 3º nº3 e Anexo II, ponto
1.1.3).
O Decreto-Lei nº 147/2008 de 29
de Julho, veio absorver estas orientações, efectuando assim a transposição
(tardia) da Directiva. No caso sub judice, o dano só relevaria caso os esquilos
fossem espécie protegida, a sua morte constituísse um “dano significativo” para
o ecossistema, e a comissão organizadora fosse demandada a título de
responsabilidade subjectiva. Note-se que, na linha do disposto na Directiva, a
ocorrência do dano no contexto de uma actividade económica listada só releva
para os efeitos da imputação a título objectivo – artigos 8º e 13º nº1 do
Decreto-Lei nº 147/2008.
A estarem preenchidos estes
pressupostos, a comissão organizadora poderia mesmo ser convidada a tomar
medidas preventivas pelas autoridades administrativas, ao abrigo do artigo 14º
do Decreto-Lei nº147/2008, agindo oficiosamente ou na sequência de uma
solicitação de qualquer interessado (artigo 18ºnº2 do diploma em análise), no
sentido de minimizar o risco de agressão ambiental. Havendo consumação do dano,
poder-lhe-ia ser imposta a adopção de medidas reparatórias (artigos 15º e 18º
nº6), a desenvolver nos termos do Anexo V.
Forçoso é concluir, todavia, que
contra o pecado da poluição ambiental – recentemente alçado a pecado capital
por Bento XVI – a prevenção continua a ser o melhor remédio (Carla Amado Gomes, Ob. cit., página 234).
Um outro caso de reclamação, por
parte de um proprietário, de uma indemnização por morte de abelhas em virtude
de ataques causados por abelharucos (uma espécie protegida) foi objecto de uma
recomendação do Provedor de Justiça ao legislador (Recomendação do Provedor de
Justiça nº6/B/97 de 21 de Março) no sentido de emitir legislação que contemple
a compensação dos proprietários (fora do âmbito da única situação regulada,
quanto a espécies não cinegéticas : prejuízos provocados por ataques do lobo
ibérico), (Carla Amado Gomes, O Provedor de Justiça Defensor do Ambiente,
Lisboa, 2000, página 212).
Concluímos o presente trabalho
dizendo que o tratamento dos animais tem suscitado e continuará a suscitar uma
intervenção ponderada dos legisladores nacionais, europeu e internacionais que,
longe de radicalismos exacerbados, contribuam para a concretização do provérbio
“quem maltrata um animal, não é um bom natural”.
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Sílvia Esteves
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