Tutela
do ambiente – via penal ou contra-ordenacional?
Só muito recentemente é que se começou a colocar o
problema da criminalização de condutas lesivas do ambiente, ao mesmo tempo que
se alargavam as sanções administrativas ao domínio ambiental, dando origem ao
Direito Administrativo Contra-Ordenacional do Ambiente.
Também só muito recentemente é que a defesa do
ambiente assumiu a dimensão de um bem jurídico objectivo fundamental,
integrando os valores essenciais comuns da sociedade, adquirindo estatuto
constitucional, quer como direito fundamental (realização da dignidade da
pessoa humana em face das novas agressões ambientais), quer como principio
geral e como tarefa fundamental do Estado, e é esta segunda vertente que faz
surgir o Direito Penal do Ambiente.
Saber se a tutela sancionatória do ambiente deve ser
realizada preferencialmente pela via penal ou pela via administrativa, é uma
questão que dá azo a muita discussão, sendo que a clarificação dos problemas
essenciais emergentes desta discussão é o nosso objectivo com a realização
deste trabalho.
A
tutela do Ambiente pelo Direito Penal
Os atentados mais graves ao ambiente encontram-se
qualificados como crimes no Código Penal, nomeadamente nos artigos 278º e 279º – crime de danos contra a natureza e o crime de
poluição.
Tratam-se de “Neocriminalizações”
- qualificação como crime de uma conduta que até então não era vista como tal –
o ambiente passa assim a ser tutelado em si mesmo, independentemente da
existência de qualquer perigo ou lesão para bens pessoais ou patrimoniais do
homem.
Esta tutela autónoma do ambiente deve-se não só à cada
vez maior tomada de consciência pela comunidade da gravidade da degradação
ambiental causada pela crescente industrialização e verificação das condutas
perigosas para o equilíbrio ecológico (no que se pode chamar uma “sociedade de
risco”), como também pelo facto de o legislador constitucional ter representado
o direito ao ambiente como um direito fundamental autónomo e como direito
social e económico, que exige prestações positivas das autoridades estaduais,
ficando o legislador penal legitimado a criar crimes onde o bem jurídico
protegido seja o ambiente enquanto tal.
Esta legitimidade do legislador penal justifica-se precisamente
pelo facto de, sendo a CRP a lei suprema do ordenamento jurídico, dever existir
uma coerência entre os valores nela previstos e os bens jurídicos protegidos
pelo Direito Penal.
Considera-se que uma conduta só pode constituir um
crime quando lesar ou puser em perigo um bem jurídico com relevância
constitucional, no entanto, a intervenção do Direito Penal não é necessária
para evitar todas as lesões de todos os valores com assento constitucional.
Tendo este um carácter particularmente gravoso, uma
vez que é o único que permite a privação da liberdade das pessoas pela
aplicação de uma pena de prisão, deve ter um carácter subsidiário ou de ultima ratio, ou seja, este só dever intervir e
qualificar uma conduta como crime, fazendo-lhe corresponder uma sanção, quando
as sanções impostas por outros ramos do direito forem ineficazes ou
insuficientes para proteger o bem jurídico.
Há ainda que averiguar se a intervenção penal se
reveste de eficácia, o que significa
averiguar da aptidão dos meios de natureza penal para, em concreto, proteger o
bem jurídico.
O entendimento da Professora Maria Fernanda Palma parece ir ao encontro do que já foi
dito. Para a autora em questão, a legitimidade da intervenção penal quanto ao
ambiente pressupõe a discussão dos seguintes critérios reveladores da
possibilidade de consenso social amplo:
1- A
necessidade de protecção do bem jurídico. Bem carente de tutela penal será
aquele que corresponda a um interesse não meramente simbólico dos indivíduos ou
da sociedade, os valores éticos atingidos têm que corresponder a bens
substanciais.
2- O
prévio relevo ético das condutas incriminadas. O direito penal só poderá
intervir onde seja indiscutível e consensual a censura social do comportamento,
por ser um Direito Penal de culpa. A atribuição de culpa deverá ser sobretudo a
comprovação de uma capacidade de discernimento e decisão relativamente aos
valores, de onde resulta a inibição de utilizar o Direito Penal para fins
políticos, mesmo que de política social ou ambiental. A infracção de quaisquer
regulamentos da Administração que não implique uma conduta causalmente lesiva
do ambiente e eticamente apreensível como tal não é legitimamente tutelável
pelo Direito Penal.
3- A
não contradição axiológica com outras soluções do sistema.
4- A
ineficácia de outros meios para a protecção do bem jurídico é uma condição
legitimadora irrenunciável – manifestação da necessidade da pena e do princípio
da adequação.
Verificam-se, contudo, algumas dificuldades na criminalização das ofensas ao ambiente, e que se
manifestam a vários níveis:
Em primeiro lugar, a inclusão dos crimes contra o
ambiente no Código Penal e não em legislação extravagante, impede a
responsabilização criminal das pessoas colectivas, impossibilidade esta que
resulta do carácter pessoal da responsabilidade criminal (artigo 11º do CP).
O facto de só poderem ser punidos pela prática do
crime de danos contra a natureza e do crime de poluição as pessoas individuais,
representa uma solução notoriamente injusta, uma vez que são estes que menos
responsabilidades têm na degradação ambiental, sendo certo que as empresas são,
por regra, os principais agentes poluidores.
Tal responsabilização já seria possível se estes
crimes tivessem sido previstos no âmbito do direito
penal secundário (contido em leis avulsas), dado que aqui não vigora o carácter
pessoal da responsabilidade jurídico-penal, e o que para além disso se
justificava por a protecção do ambiente se encontrar consagrada na parte da CRP
respeitante aos direitos sociais.
Isto não levaria necessariamente a uma menor
eficácia na protecção do ambiente, o que é fundamental é que os membros da
comunidade tomem conhecimento da punição do agente poluidor, não sendo para
eles relevante se a proibição de poluir consta do Código Penal ou de legislação
extravagante.
Dado que a sanção de pena de prisão não é adequada
para as pessoas colectivas, deveriam ser aplicadas sanções mais específicas e
adequadas à realidade da vida económica, como por exemplo a interdição de certas
actividades ou até o encerramento da empresa.
O recurso à figura da comparticipação seria uma possibilidade de encontrar uma solução
materialmente justa que permitisse a punição das pessoas colectivas - no exemplo dado pelo Professor Gomes Canotilho, o director de uma empresa poderia ser
responsabilizado como autor mediato do crime ecológico, desde que o seu empregado
actuasse cumprindo ordens, no exercício das suas funções e na prossecução do
interesse da empresa.
Quanto à configuração
jurídica dos crimes ecológicos, desde logo destaca-se a sua natureza de interesse difuso – representam um
interesse de todos mas também de cada um. É raro o dano ambiental resultar da
conduta isolada de um único agente poluidor, o mais comum será a contribuição
de múltiplos agentes para a produção do resultado desvalioso, o que torna
difícil a determinação da responsabilidade relativa de cada um dos
intervenientes, até porque a sua própria conduta poderia ser mais ou menos inofensiva
se não fosse conjugada com a conduta de outrem.
Parece que a configuração jurídica adequada à tutela
dos bens ecológicos será não a dos crimes de danos, nem de perigo concreto, mas
sim a dos crimes de perigo abstracto
– verifica-se uma intervenção antecipada da tutela penal, já que o crime se
consuma independentemente do desvalor ambiental, bastando a adopçao pelo agente
de uma conduta proibida em si mesma.
O recurso excessivo a esta figura é, no entanto,
desaconselhável, pois é discutível a sua compatibilidade com as exigências
constitucionais de respeito pelos princípios
da culpa e da legalidade.
O principio da
tipicidade por sua vez impõe que nenhum dos tipos de crime prescinda de uma
enumeração exaustiva dos resultados desvaliosos a evitar ou de uma enumeração
igualmente exaustiva das condutas proibidas, o que parece impossível para o
legislador numa área tão mutável como a do ambiente, em que são imagináveis
inúmeras actividades desaconselhadas e inúmeros resultados lesivos.
Quanto ao processo penal relativo a crimes
ecológicos, poderia ser problemática, tendo em conta o conceito estrito de
ofendido para efeito de constituição de assistente no processo, e concebendo o
ambiente como um interesse difuso, a atribuição a qualquer cidadão ou
associação de defesa do ambiente dos importantes poderes interventivos que
resultam do artigo 69º/2 do Código de
Processo Penal.
Com a Lei da Acção Popular (lei nº 83/95, de 31 de
Agosto), deixa de haver um problema, pois dela decorre a possibilidade de
qualquer cidadão ou associação de defesa do ambiente denunciar às autoridades a
prática de uma infracção ambiental, bem como a possibilidade de virem depois a
constituir-se assistentes no processo penal, o que lhes permitirá participar
nas diligencias probatórias, deduzir acusação pelos factos em causa no sentido
de eles serem submetidos a julgamento e ainda interpor recurso das decisões com
as quais discordem.
O artigo 278º
do Código Penal regula o crime de danos
contra a natureza – trata-se de um crime ecológico autónomo, visto que o bem jurídico protegido é o ambiente em si
mesmo e para que haja consumação do crime não é necessária a criação de
qualquer dano ou perigo para o homem de forma imediata.
Parece ter havido uma opção do legislador no sentido
de construir este crime como um crime de
desobediência – o que significa que para que ele se consuma, é necessário
que o agente desrespeite disposições legais ou regulamentares protectoras dos objectos
de tutela deste artigo (nomeadamente a fauna, a flora, o habitat natural e os
recursos do subsolo).
No entanto, esta mera desobediência não é suficiente
para que o crime ocorra, exigindo-se ainda que haja um dano ecológico, traduzido na eliminação de exemplares de fauna ou
flora, na destruição de habitats naturais ou ainda no esgotamento de recursos
do subsolo.
Este crime do artigo
278º surge pois como um crime de desobediência qualificada pela ocorrência
de um dano ambiental, dano este que deve ainda revestir um carácter de particular
gravidade.
Os conceitos indeterminados patentes no artigo em
questão são contudo susceptíveis de criar grandes dificuldades na aplicação
desta norma pelos tribunais.
No que toca ao artigo
279º, tal como o crime de danos contra a natureza, é um crime ecológico,
pois tem como objectos autónomos de protecção a água, o solo, o ar, ou o
domínio do som.
Parece que também aqui o legislador optou por
construir o tipo legal de crime como um crime
de desobediência qualificada pelo dano, o que significa que é indispensável
para que exista o crime que se verifique uma poluição em medida intolerável, o que
só ocorre quando se contrariar prescrições ou limitações impostas pelas
autoridades em conformidade com as disposições legais ou regulamentares.
Assim, a desobediência não é só por si relevante para
que haja crime de poluição, sendo também necessária a efectiva poluição da água, dos solos, do ar ou a poluição sonora,
de onde decorre que o ambiente não é aqui merecedor de uma protecçao autónoma –
a norma prevê uma punição agravada do agente uma vez que ele, através da sua
conduta poluidora, criou um perigo para a vida ou para a integridade física de
outra pessoa ou mesmo para bens patrimoniais de valor elevado.
Esta opção legislativa por configurar juridicamente
estes crimes ambientais como crimes de
desobediência tem sido alvo de criticas, nomeadamente as seguintes:
Ao focar-se o desvalor da conduta proibida pelo
crime na desobediência a prescrições administrativas, não estamos propriamente
a proteger o ambiente mas sim as próprias opções e imposições da Administração.
Para além disso, o Direito Penal estaria numa
relação de total instrumentalização pelo Direito Administrativo, tendo como
papel promover objectivos que lhe devem ser alheios, o que levaria à utilização
por parte do Estado de penas de prisão e de multa na prossecução dos seus
objectivos quotidianos de bom ordenamento da vida em sociedade, o que põe em
causa o carácter de subsidiariedade/ultima
ratio do direito penal.
Pode contra-argumentar-se que o artigo 278º demonstra inequivocamente que o bem jurídico protegido
de forma imediata e autónoma é o ambiente devido à enunciação expressa dos seus
objectos de tutela, enquanto que o artigo
279º, uma vez que não prescinde, para que exista crime de poluição, da
efectiva poluição da água, solos, ar ou som, tem também como objectivo a
protecção ecológica.
Isto significa que apesar de não se poder prescindir
da intervenção da Administração no sentido de fixar limites a partir dos quais
os ditos danos serão inaceitáveis, o que os artigos protegem é o ambiente e não
o respeito pelas prescrições administrativas em si próprias.
Na opinião do Professor
Figueiredo Dias, deve adoptar-se um modelo
combinatório - os crimes contra o ambiente deverão ser simultaneamente
crimes de dever (de desobediência) e de resultado (eventualmente danoso), isto
é, devem tomar como base uma conduta que actua lesivamente sobre um componente
ambiental, mas que só é penalizada na medida em que um regulamento ou uma ordem
emanados da Administraçao sejam infrigidos (sendo o artigo 278º um exemplo
desta construção típica).
O problema é que se a tipicidade depende do crivo da
contradição com normas ou ordens da Administração, que fornecem o critério da
relevância típica, então o dano ambiental é determinado pela autoridade
administrativa - se houver dano material elevado e mesmo assim se tiver
respeitado o comando da Administração não haverá conduta típica; se pelo
contrário houver dano pouco significativo ou objectivamente admissível mas
associado a desobediência, o agente será punível à luz do disposto no art.279º,
uma vez que esta norma incriminadora delimita a conduta típica através de uma
actividade em si mesma considerada danosa.
Outra crítica que se faz a esta configuração dos
crimes ecológicos como crimes de desobediência a prescrições administrativas,
consiste em isso fazer deles normas
penais em branco, dado que o preenchimento total do tipo legal de crime só
pode ser feito por remissão para outras normas, neste caso sem dignidade penal.
Logo, não bastaria nunca a análise do disposto no artigo
278º e 279º, tendo ainda que se ter em conta o prescrito em normas de natureza
administrativa, o que leva a suscitar a inconstitucionalidade destas normas
penais em branco, numa dupla vertente:
material, por um lado, por violar o princípio
da legalidade na sua vertente de tipicidade; e por outro lado, há violação do artigo168º/1
c) da CRP (parece desrespeitar o princípio da reserva de lei, uma vez que não é
nem a AR nem o Governo com autorização a definir o conteúdo da norma penal).
Pode contudo contra-argumentar-se que o artigo 278º é bastante determinado,
fornecendo critérios para o preenchimento do conceito de “forma grave”; e que
mesmo no que toca ao artigo 279º, a
sua constitucionalidade é defensável, pois apesar da grande dependência das
normas e actuações administrativa, dele resulta nitidamente qual o desvalor da
acção proibida e do resultado lesivo, e é identificável o bem jurídico tutelado
– o ambiente nos seus componentes naturais água, solos, ar e domínio do som.
O facto de os crimes ecológicos constituírem crimes
de desobediência traduz-se na dependência destas incriminações penais perante o
direito administrativo – assim, se o agente adoptar uma conduta danosa para o
ambiente numa área em que a Administraçao ainda não emitiu quaisquer
prescrições com preocupações ecológicas, não comete qualquer crime que se
enquadre no artigo 278º ou 279º.
Há um certo número de lesões ambientais que têm que
ser suportadas, em nome do progresso e do desenvolvimento económico, logo só
pode caber às autoridades administrativas determinar os valores-limite a partir
dos quais o dano para o ambiente é inadmissível.
Esta acessoriedade é relativa e não absoluta, uma
vez que os crimes ecológicos não têm como objecto proteger o respeito pelas
disposições da Administração, mas sim tutelar o bem jurídico concreto que é o
ambiente.
Até chega a ser desejável esta convivência das
incriminações penais com as prescrições administrativas, uma vez que concede maior
segurança para os cidadãos.
Como a dependência face estas prescrições
administrativas é de direito e não de acto, nunca relevará uma eventual
tolerância ilícita da administração face ao comportamento danoso para o
ambiente ou mesmo uma eventual actuação ao abrigo de uma autorização ou licença
obtidas de modo ilegítimo.
A intervenção do Direito Penal só será legítima se
for eficaz na protecção do bem jurídico, o que leva a não aceitar aquilo a que
se tem chamado “direito penal simbólico, e
que consiste na ideia de que a criação de crimes ecológicos não corresponderá a
uma efectiva punição dos agentes poluidores, servindo apenas para sossegar
consciências e desviar a atenção das medidas que politicamente deveriam ter
sido tomadas mas que não foram por economicamente custosas, difíceis ou
impopulares.
Ora, isto claramente contraria a função do Direito Penal
de tutela de bens jurídicos – se há um intuito de intimidar pela imposição de
penas que só virão a ser aplicadas em casos excepcionais, a finalidade de
prevenção falhará, dado que a comunidade ao aperceber-se da não efectividade
das normas que protegem o ambiente, deixará de acreditar na sua vigência, já
para não dizer que se está a violar o princípio da dignidade da pessoa humana
ao instrumentalizar-se pessoas, pondo-as a servir de exemplo e tratando-as de
forma desigual.
Assim, a eficácia da intervenção penal na proteção
do ambiente depende da efectiva punição
das condutas proibidas e do conhecimento que a comunidade adquira da aplicação de
penas a esses comportamentos.
A
tutela do Ambiente pelo Direito de Mera Ordenação Social
O direito de mera ordenação social é o direito
administrativo de natureza sancionatória, criado com o DL 433/82, especialmente
vocacionado para a protecção do ambiente, pelo que há que reconhecer algumas
especificidades das contra-ordenações ambientais e avaliar a eficácia daquele
sistema normativo na protecção ecológica.
Tendo surgido na sequência de um movimento de
descriminalização, e tanto pelo seu conteúdo como pela entidade competente para
a sua aplicação, este Direito autonomizou-se qualitativamente do Direito Penal,
(sendo-lhe reconhecidas especificidades dogmáticas, sancionatórias e
processuais), embora ainda não se confunda com o Direito Administrativo.
Como a Administração tem um papel cada vez mais
interveniente no âmbito de um Estado de Direito Social, tem caído na tentação
de recorrer às penas do Direito Penal – sanções particularmente gravosas por
permitirem uma privação da liberdade do individuo ou uma diminuição do seu
património – para atingir os seus objectivos e como reforço das suas políticas.
Assiste-se assim a um enorme alargamento do âmbito
do direito penal, começando a amontoar-se diplomas de legislação penal
extravagante, sobretudo de carácter administrativo e de conteúdo
económico-social.
O direito de mera ordenação social não é Direito Penal,
nem o pretende ser, mas sim Direito Administrativo de carácter sancionatório.
O Professor
Gomes Canotilho atribui-lhe três objectivos fundamentais:
- Retirar dos quadros do direito penal aquelas
infracções que não possuem relevância ética;
- Guardar o conteúdo ético que vive nas sanções
penais (que devem possuir especial relevância comunitária pela sua gravidade e
aplicação apenas em casos de necessidade extrema) para comportamentos também
eticamente relevantes;
- Permitir o aparecimento de sanções diversas das
sanções penais (que só podem ser aplicadas por um tribunal) e atribuir aos
agentes administrativos a faculdade de aplicar aquelas sanções.
O que se
pretende com a criação do Direito das Contra-Ordenações é uma total
autonomização do ilícito de mera ordenação social face ao ilícito penal,
autonomia esta que se manifesta no plano dogmático, sancionatório e processual.
Isto significa que ou um dado comportamento é tao
grave que possui dignidade penal e deve ser considerado um crime ou então
constitui o mero desrespeito por uma injunção administrativa ligada à boa
organização da vida social, devendo então ser configurado como
contra-ordenação.
Passamos
a expor algumas diferenças entre estes dois tipos de sanção, que justificam a
sua autonomia uma em relação à outra:
Enquanto o crime diz respeito a condutas que a comunidade
considera desvaliosas, independentemente da sua proibição legal, dado porem em
causa bens jurídicos indispensáveis, a contra-ordenaçao diz respeito a condutas
em si mesmas “neutras”, que só adquirirão relevo depois de a Administração as nomear
como comportamentos a adoptar ou a evitar.
Enquanto que no Direito Penal não há pena sem culpa
e a medida da pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa (Artigo
40º/2 do Código Penal), sendo esta entendida como “qualidade desvaliosa e
censurável efectivamente existente no facto e/ou na pessoa do agente”, no
direito das contra-ordenaçoes, pelo contrário, a culpa é entendida como “mera
imputação do facto à responsabilidade social do seu autor”, concepção esta que
facilita a punição do agente poluidor, uma vez que é bem menos restritiva que a
configuração penal.
A coima é a sanção específica deste ilícito. Aliás,
a sua previsão como sanção constitui o critério
formal para que se qualifique uma conduta como contra-ordenação.
Distingue-se indubitavelmente da multa, quer quanto ao seu regime, quer
quanto às suas finalidades – as finalidades da multa são unicamente preventivas,
visando-se a tutela dos bens jurídicos e o restabelecimento da paz jurídica
comunitária abalada pelo crime por um lado e a reintegração social do agente
por outro lado; as finalidades da coima entendem-se como uma mera advertência
ao cidadão infractor, sendo estranhas a sentidos positivos de prevenção,
nomeadamente de prevenção especial de (re) socialização, ao que acresce que se
o agente condenado a uma pena de multa não pagar terá que cumprir uma pena de
prisão (a menos que o não pagamento não lhe seja imputável) enquanto o não
pagamento da coima nunca poderá implicar a prisão do faltoso, mas sim outras
medidas como substituição por trabalho a favor da comunidade ou execução de
bens.
Vemos que a contra-ordenação tem um carácter de
censura puramente social, entendida como um aviso ao cidadão para que este
passe a cumprir o seu dever de colaborar com a Administração na prática das
suas funções.
Neste campo, a intervenção das associações de defesa
do ambiente e de qualquer particular no processo é extremamente limitada –
podem denunciar as actividades lesivas do ambiente, colaborar na preservação de
provas e intervir como testemunhas, mas já não é possível constituírem-se assistentes
nesta fase administrativa do processo, o que os impossibilita de impugnar as
decisões administrativas que não sancionem a actividade poluidora (ou o façam
de forma demasiado benevolente), pois o agente é o único com legitimidade para
impugnar essa decisão administrativa.
Como grande parte das agressões ao ambiente têm a
ver com a violação de normas preventivas em que não estão em causa propriamente
valores indispensáveis para a subsistência da vida na comunidade, mas antes a
perturbação da ordem social, está explicada a preferência do direito de mera
ordenação social para o tratamento destas infracções, o que se encontra enunciado
no artigo 47º/1 da Lei de Bases do Ambiente.
No que toca às características
destas contra-ordenações, apesar de a regra ser que o agente só poderá ser
punido pela sua prática quando agir com dolo, em sede de contra-ordenaçoes
ambientais as condutas negligentes são normalmente punidas, assim como a mera
tentativa – o agente que tenta causar danos ambientais, mesmo que não o consiga,
é normalmente punido, ainda que de forma atenuada.
É fácil verificar o tratamento privilegiado que é
conferido ao ambiente, pela transformação destas duas excepções em regra.
Uma outra característica consiste na previsão de diferentes
sanções acessórias, aplicadas em
conjunto com a sanção principal (que é a coima) e que revelam um intuito de
reparar um prejuízo já verificado ou de evitar um dano ainda por ocorrer.
Para definir
as condutas que constituem contra-ordenações ambientais, recorrem-se a técnicas pouco rígidas, tais como o recurso a cláusulas
gerais; o entendimento de que consiste numa contra-ordenação a adopçao de
determinados actos que contrariem licenças e autorizações; a sua descrição intensiva,
por indicação dos seus elementos constitutivos; ou considerando como
contra-ordenação o incumprimento por um determinado agente de uma imposição
concreta e individual da Administração.
Daqui resultam nítidas vantagens no que toca à
eficácia da intervenção do direito contra-ordenacional no domínio do ambiente,
por contraposição às regras rígidas que vinculam o legislador penal na
qualificação de uma conduta como criminosa.
Enquanto a tutela penal é essencialmente repressiva,
e a tutela administrativa é por excelência preventiva, o ilícito de mera
ordenação social parece ocupar uma posição
intermédia – ainda que possa parecer exclusivamente repressivo, por se
traduzir no conhecimento de um ilícito e na decisão da respectiva sanção, é
possível apontar-lhe também uma natureza preventiva, entendida enquanto intuito
de obstar a verificação de determinado dano, ideia esta que resulta da própria
Lei de Bases do Ambiente, no seu artigo 3º.
A já referida punição como regra da tentativa e da negligência
nas contra-ordenações ambientais, também indicia finalidades fortemente
preventivas, dado que não se exige o desvalor do resultado para que haja punição,
e impõe-se a observância de especiais deveres de cuidado na conduta a adoptar
pelos agentes.
Até mesmo a noção de coima enquanto advertência ao
cidadão que faltou ao dever de colaborar na prossecução dos interesses do
Estado, indicia já uma conotação preventiva.
Convém ainda frisar que o montante desta coima não
deve nunca situar-se abaixo do beneficio económico auferido pelo agente com a
prática da infracção, para que sob o ponto de vista preventivo, deixe de ser
útil ao agente poluidor fazer um cálculo dos custos e benefícios resultantes da
prática de uma infracção.
Acresce que esta ideia de prevenção é também
comprovada pela aplicação de sanções
acessórias, para além da coima, que podem ser bem mais prejudiciais para o
condenado do que aquela e que têm em regra uma função impeditiva de infracções
futuras.
Também do ponto de vista processual, o facto de o conhecimento e sancionamento do ilícito
ser atribuído às autoridades administrativas demonstra a clara intenção de estimular
a proximidade entre estas e os eventuais infractores, com o objectivo de
potenciar a celeridade e eficácia daquela intervenção, impedindo a verificação
do ilícito ou pelo menos evitando males maiores.
CONCLUSÕES
Numa tentativa de resumir tudo o que foi exposto até
agora, podemos concluir que tanto a adopção da via penal como da via contra-ordenacional
para a tutela do ambiente, acarretam inúmeras vantagens e desvantagens.
O Professor
Vasco Pereira da Silva faz uma enunciação das mesmas, que passamos a expor:
A escolha da via
penal para a tutela do ambiente tem a seu favor a importância da existência de crimes ambientais, o que confere
à defesa do ambiente uma maior “dignidade jurídica”; a maior intensidade da
tutela ambiental, dando origem não apenas à aplicação de sanções pecuniárias como
também a penas privativas da liberdade e por último, a existência das garantias
do processo penal, como a “presunção de inocência” e a realização de um “justo
julgamento” , dispostas nos artigos 27º a 32º CRP.
Contudo, podem indicar-se como inconvenientes a inadequação do Direito Penal para a tutela do
ambiente, por se orientar sobretudo no sentido da repressão de comportamentos
anti-juridicos graves, enquanto o direito do ambiente assenta num principio de
prevenção; a existência no ilícito ambiental de inúmeras situações danosas
provocadas pela actuação de pessoas colectivas, enquanto que no Direito Penal a
imputação de responsabilidades é exclusivamente individual; o perigo de descaracterização
e de subalternização do Direito Penal, uma vez que a maior parte dos crimes
ambientais decorre da desobediência a injunções de autoridades administrativas,
passando a ser a Administraçao a controlar o respeito pelas fronteiras do
Direito Penal, colocando este numa situação de “acessoriedade administrativa”, transformando-o
no braço direito da Administração e conferindo-lhe meras funções executivas
relativamente às politicas tuteladas; e a ineficácia de um sistema
sancionatório do ambiente de tipo penal pela dificuldade prática em apanhar e
condenar os criminosos do ambiente, o que levaria a um défice da sua execução,
também justificada pela hesitação dos juízes na aplicação de penas severas.
Por outro lado, a escolha da via contra-ordenacional para a tutela do ambiente tem como vantagens a maior celeridade e eficácia
na punição do infractor ambiental, que decorre da maior simplicidade do
procedimento administrativo em comparação com o judicial; permite a responsabilização não apenas dos indivíduos mas também
das pessoas colectivas; garante a
autonomia do Direito Penal que não necessita de estar mais submetido às
estatuições das autoridades administrativas, ainda que implique a atribuição a
estas do poder de punir.
Porém, contra
esta orientação pode ainda invocar-se a diminuição efectiva da possibilidade de
defesa dos particulares; a tendência para banalizar as actuações delituais em
matéria de ambiente, remetidos para o universo das sanções pecuniárias, vistas
como uma realidade de menor importância; a tendência para transformar a sanção pecuniária
num mero custo da actividade económica poluente, que pode tornar lucrativo um
delito ambiental mediante uma mera operação contabilística.
Posto
isto, qual é então a solução?
A tutela penal do ambiente repercute-se na
actividade administrativa tal como a tutela administrativa do ambiente interfere
na Justiça Penal, solicitando a sua intervenção para se poder concretizar.
De acordo com a opinião do Professor Vasco Pereira da Silva, não se devem adoptar as
orientações meramente exclusivistas quanto à tutela sancionatória do ambiente, que
remetem tudo ou para o domínio do Direito Penal ou do Direto Contra-Ordenacional,
devendo-se pelo contrário combinar de forma equilibrada as sanções penais com
as sanções administrativas.
O professor também não acolhe a orientação sugerida
pelo autor alemão Hassemer, uma espécie de “terceira
via”, que consiste numa junção de todas as disposições dos outros ramos de
direito (penal, fiscal, económico, etc.) que tenham uma relação directa com o
direito ambiental, levando a reunir num ramo de direito autónomo todas as normas
sancionatórias do Direito do Ambiente, sem que se venha a perceber qual a sua
razão de ser, quais os fundamentos de unidade ou da autonomia desse pretenso
ramo de direito, e muito menos qual a sua utilidade prática.
A Professora
Maria Fernanda Palma, perante a questão de saber se o Direito de mera
ordenaçao social é a solução mais idónea para as infracçoes anti-ambientais,
admite que pelos meios sancionatórios que oferece e por não ser a culpa o seu
critério predominante de fim e medida da sanção, mas antes a reparação do dano
e a desmotivação do infractor, através do prejuízo pecuniário causado pela
sanção, este ramo contém os mecanismos ideais relativamente a condutas
anti-ambientais que não sejam imediatamente anti-humanas ou que sejam apenas
remotamente perigosas para os bens jurídicos pessoais ou sociais, uma vez que a
tutela penal do ambiente parece pressupor limites rigorosos, não podendo
ultrapassar, legitimamente a evidente repercussão humana.
Também o Professor
Gomes Canotilho refere o melhor posicionamento do direito de mera ordenação
social para a tutela ambiental relativamente ao direito penal, o que não quer
dizer que não caiba a este último também uma função de protecção do bem
jurídico ambiente, mas a sua intervenção deve ser reservada a casos de
particular gravidade e sempre com a preocupação que o regime previsto na lei
penal possa ser eficaz sob o ponto de vista do bem jurídico a proteger.
Quanto a saber por qual modelo preferencial de
tutela sancionatória do ambiente é que opta o nosso ordenamento jurídico, parece
privilegiar-se a via administrativa, o que se retira tanto do limitado elenco
de crimes ambientais como do facto de a maior parte dos delitos ambientais
corresponderem a contra-ordenações, o que deve levar a reservar o Direito Penal
do Ambiente para os casos mais graves de comportamentos anti-jurídicos lesivos
do ambiente.
Contudo, como já vimos que há vários inconvenientes
resultantes da tutela contra-ordenacional, afigura-se necessário evitar ou pelo
menos minimizar a sua verificação, através da valorização de direitos dos
particulares (como o direito de audiência e de defesa, de acompanhamento por
advogado ou defensor e de recurso das decisões); da possibilidade de aplicar
sanções acessórias para lá das coimas (de maneira a evitar a depreciação da
importância do ilícito contra-ordenacional, reduzido a simples dimensão
pecuniária); e da procura de que o pagamento das coimas não seja a alternativa
economicamente mais rentável, vistas como “custos de produção” , o que se
consegue com uma punição contra-ordenacional adequada e “exemplar”, ainda que
sem esquecer o princípio da proporcionalidade.
Conclui-se então que a via mais indicada para a
tutela sancionatória do ambiente consiste em criminalizar as condutas mais
graves, (uma vez que a defesa do ambiente pertence aos valores fundamentais da
nossa sociedade e interliga-se com a realização da dignidade da pessoa humana),
mas sem que isso implique uma banalização do direito penal do ambiente, pois o
modo mais “natural” de reagir contra delitos ambientais é através das
contra-ordenações.
Esta solução adoptada pelo ordenamento português de
conjugar a tutela penal com a contra-ordenacional do ambiente, dando-se
preferência à segunda, permite conjugar as vantagens e contornar os
inconvenientes dos modelos exclusivistas, abrindo caminho para uma reacção
sancionatória plena, adequada e efectiva da ordem jurídica contra
comportamentos delituosos lesivos do ambiente.
Bibliografia:
- José Gomes Canotilho, "Introdução ao Direito do Ambiente"
- Maria Fernanda Palma, “Direito Penal do Ambiente – Uma Primeira Abordagem”
- Vasco Pereira da Silva, “Verde, cor do Direito”
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