segunda-feira, 21 de maio de 2012

Tutela do ambiente - via penal ou contra-ordenacional?


                       Tutela do ambiente – via penal ou contra-ordenacional?


Só muito recentemente é que se começou a colocar o problema da criminalização de condutas lesivas do ambiente, ao mesmo tempo que se alargavam as sanções administrativas ao domínio ambiental, dando origem ao Direito Administrativo Contra-Ordenacional do Ambiente.

Também só muito recentemente é que a defesa do ambiente assumiu a dimensão de um bem jurídico objectivo fundamental, integrando os valores essenciais comuns da sociedade, adquirindo estatuto constitucional, quer como direito fundamental (realização da dignidade da pessoa humana em face das novas agressões ambientais), quer como principio geral e como tarefa fundamental do Estado, e é esta segunda vertente que faz surgir o Direito Penal do Ambiente.

Saber se a tutela sancionatória do ambiente deve ser realizada preferencialmente pela via penal ou pela via administrativa, é uma questão que dá azo a muita discussão, sendo que a clarificação dos problemas essenciais emergentes desta discussão é o nosso objectivo com a realização deste trabalho.

A tutela do Ambiente pelo Direito Penal

Os atentados mais graves ao ambiente encontram-se qualificados como crimes no Código Penal, nomeadamente nos artigos 278º e 279º – crime de danos contra a natureza e o crime de poluição.

Tratam-se de “Neocriminalizações” - qualificação como crime de uma conduta que até então não era vista como tal – o ambiente passa assim a ser tutelado em si mesmo, independentemente da existência de qualquer perigo ou lesão para bens pessoais ou patrimoniais do homem.

Esta tutela autónoma do ambiente deve-se não só à cada vez maior tomada de consciência pela comunidade da gravidade da degradação ambiental causada pela crescente industrialização e verificação das condutas perigosas para o equilíbrio ecológico (no que se pode chamar uma “sociedade de risco”), como também pelo facto de o legislador constitucional ter representado o direito ao ambiente como um direito fundamental autónomo e como direito social e económico, que exige prestações positivas das autoridades estaduais, ficando o legislador penal legitimado a criar crimes onde o bem jurídico protegido seja o ambiente enquanto tal.

Esta legitimidade do legislador penal justifica-se precisamente pelo facto de, sendo a CRP a lei suprema do ordenamento jurídico, dever existir uma coerência entre os valores nela previstos e os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal.

Considera-se que uma conduta só pode constituir um crime quando lesar ou puser em perigo um bem jurídico com relevância constitucional, no entanto, a intervenção do Direito Penal não é necessária para evitar todas as lesões de todos os valores com assento constitucional.

Tendo este um carácter particularmente gravoso, uma vez que é o único que permite a privação da liberdade das pessoas pela aplicação de uma pena de prisão, deve ter um carácter subsidiário ou de ultima ratio, ou seja, este só dever intervir e qualificar uma conduta como crime, fazendo-lhe corresponder uma sanção, quando as sanções impostas por outros ramos do direito forem ineficazes ou insuficientes para proteger o bem jurídico.

Há ainda que averiguar se a intervenção penal se reveste de eficácia, o que significa averiguar da aptidão dos meios de natureza penal para, em concreto, proteger o bem jurídico.

O entendimento da Professora Maria Fernanda Palma parece ir ao encontro do que já foi dito. Para a autora em questão, a legitimidade da intervenção penal quanto ao ambiente pressupõe a discussão dos seguintes critérios reveladores da possibilidade de consenso social amplo:


1-  A necessidade de protecção do bem jurídico. Bem carente de tutela penal será aquele que corresponda a um interesse não meramente simbólico dos indivíduos ou da sociedade, os valores éticos atingidos têm que corresponder a bens substanciais.

      2- O prévio relevo ético das condutas incriminadas. O direito penal só poderá intervir onde seja indiscutível e consensual a censura social do comportamento, por ser um Direito Penal de culpa. A atribuição de culpa deverá ser sobretudo a comprovação de uma capacidade de discernimento e decisão relativamente aos valores, de onde resulta a inibição de utilizar o Direito Penal para fins políticos, mesmo que de política social ou ambiental. A infracção de quaisquer regulamentos da Administração que não implique uma conduta causalmente lesiva do ambiente e eticamente apreensível como tal não é legitimamente tutelável pelo Direito Penal.

      3-  A não contradição axiológica com outras soluções do sistema.

      4- A ineficácia de outros meios para a protecção do bem jurídico é uma condição legitimadora irrenunciável – manifestação da necessidade da pena e do princípio da adequação.

Verificam-se, contudo, algumas dificuldades na criminalização das ofensas ao ambiente, e que se manifestam a vários níveis:

Em primeiro lugar, a inclusão dos crimes contra o ambiente no Código Penal e não em legislação extravagante, impede a responsabilização criminal das pessoas colectivas, impossibilidade esta que resulta do carácter pessoal da responsabilidade criminal (artigo 11º do CP).

O facto de só poderem ser punidos pela prática do crime de danos contra a natureza e do crime de poluição as pessoas individuais, representa uma solução notoriamente injusta, uma vez que são estes que menos responsabilidades têm na degradação ambiental, sendo certo que as empresas são, por regra, os principais agentes poluidores.

Tal responsabilização já seria possível se estes crimes tivessem sido previstos no âmbito do direito penal secundário (contido em leis avulsas), dado que aqui não vigora o carácter pessoal da responsabilidade jurídico-penal, e o que para além disso se justificava por a protecção do ambiente se encontrar consagrada na parte da CRP respeitante aos direitos sociais.

Isto não levaria necessariamente a uma menor eficácia na protecção do ambiente, o que é fundamental é que os membros da comunidade tomem conhecimento da punição do agente poluidor, não sendo para eles relevante se a proibição de poluir consta do Código Penal ou de legislação extravagante.

Dado que a sanção de pena de prisão não é adequada para as pessoas colectivas, deveriam ser aplicadas sanções mais específicas e adequadas à realidade da vida económica, como por exemplo a interdição de certas actividades ou até o encerramento da empresa.

O recurso à figura da comparticipação seria uma possibilidade de encontrar uma solução materialmente justa que permitisse a punição das pessoas colectivas -  no exemplo dado pelo Professor Gomes Canotilho, o director de uma empresa poderia ser responsabilizado como autor mediato do crime ecológico, desde que o seu empregado actuasse cumprindo ordens, no exercício das suas funções e na prossecução do interesse da empresa.

Quanto à configuração jurídica dos crimes ecológicos, desde logo destaca-se a sua natureza de interesse difuso – representam um interesse de todos mas também de cada um. É raro o dano ambiental resultar da conduta isolada de um único agente poluidor, o mais comum será a contribuição de múltiplos agentes para a produção do resultado desvalioso, o que torna difícil a determinação da responsabilidade relativa de cada um dos intervenientes, até porque a sua própria conduta poderia ser mais ou menos inofensiva se não fosse conjugada com a conduta de outrem.

Parece que a configuração jurídica adequada à tutela dos bens ecológicos será não a dos crimes de danos, nem de perigo concreto, mas sim a dos crimes de perigo abstracto – verifica-se uma intervenção antecipada da tutela penal, já que o crime se consuma independentemente do desvalor ambiental, bastando a adopçao pelo agente de uma conduta proibida em si mesma.

O recurso excessivo a esta figura é, no entanto, desaconselhável, pois é discutível a sua compatibilidade com as exigências constitucionais de respeito pelos princípios da culpa e da legalidade.

O principio da tipicidade por sua vez impõe que nenhum dos tipos de crime prescinda de uma enumeração exaustiva dos resultados desvaliosos a evitar ou de uma enumeração igualmente exaustiva das condutas proibidas, o que parece impossível para o legislador numa área tão mutável como a do ambiente, em que são imagináveis inúmeras actividades desaconselhadas e inúmeros resultados lesivos.

Quanto ao processo penal relativo a crimes ecológicos, poderia ser problemática, tendo em conta o conceito estrito de ofendido para efeito de constituição de assistente no processo, e concebendo o ambiente como um interesse difuso, a atribuição a qualquer cidadão ou associação de defesa do ambiente dos importantes poderes interventivos que resultam do artigo 69º/2 do Código de Processo Penal.

Com a Lei da Acção Popular (lei nº 83/95, de 31 de Agosto), deixa de haver um problema, pois dela decorre a possibilidade de qualquer cidadão ou associação de defesa do ambiente denunciar às autoridades a prática de uma infracção ambiental, bem como a possibilidade de virem depois a constituir-se assistentes no processo penal, o que lhes permitirá participar nas diligencias probatórias, deduzir acusação pelos factos em causa no sentido de eles serem submetidos a julgamento e ainda interpor recurso das decisões com as quais discordem.

O artigo 278º do Código Penal regula o crime de danos contra a natureza – trata-se de um crime ecológico autónomo, visto que o bem jurídico protegido é o ambiente em si mesmo e para que haja consumação do crime não é necessária a criação de qualquer dano ou perigo para o homem de forma imediata.

Parece ter havido uma opção do legislador no sentido de construir este crime como um crime de desobediência – o que significa que para que ele se consuma, é necessário que o agente desrespeite disposições legais ou regulamentares protectoras dos objectos de tutela deste artigo (nomeadamente a fauna, a flora, o habitat natural e os recursos do subsolo).

No entanto, esta mera desobediência não é suficiente para que o crime ocorra, exigindo-se ainda que haja um dano ecológico, traduzido na eliminação de exemplares de fauna ou flora, na destruição de habitats naturais ou ainda no esgotamento de recursos do subsolo.

Este crime do artigo 278º surge pois como um crime de desobediência qualificada pela ocorrência de um dano ambiental, dano este que deve ainda revestir um carácter de particular gravidade.

Os conceitos indeterminados patentes no artigo em questão são contudo susceptíveis de criar grandes dificuldades na aplicação desta norma pelos tribunais.

No que toca ao artigo 279º, tal como o crime de danos contra a natureza, é um crime ecológico, pois tem como objectos autónomos de protecção a água, o solo, o ar, ou o domínio do som.

Parece que também aqui o legislador optou por construir o tipo legal de crime como um crime de desobediência qualificada pelo dano, o que significa que é indispensável para que exista o crime que se verifique uma poluição em medida intolerável, o que só ocorre quando se contrariar prescrições ou limitações impostas pelas autoridades em conformidade com as disposições legais ou regulamentares.

Assim, a desobediência não é só por si relevante para que haja crime de poluição, sendo também necessária a efectiva poluição da água, dos solos, do ar ou a poluição sonora, de onde decorre que o ambiente não é aqui merecedor de uma protecçao autónoma – a norma prevê uma punição agravada do agente uma vez que ele, através da sua conduta poluidora, criou um perigo para a vida ou para a integridade física de outra pessoa ou mesmo para bens patrimoniais de valor elevado.

Esta opção legislativa por configurar juridicamente estes crimes ambientais  como crimes de desobediência tem sido alvo de criticas, nomeadamente as seguintes:

Ao focar-se o desvalor da conduta proibida pelo crime na desobediência a prescrições administrativas, não estamos propriamente a proteger o ambiente mas sim as próprias opções e imposições da Administração.

Para além disso, o Direito Penal estaria numa relação de total instrumentalização pelo Direito Administrativo, tendo como papel promover objectivos que lhe devem ser alheios, o que levaria à utilização por parte do Estado de penas de prisão e de multa na prossecução dos seus objectivos quotidianos de bom ordenamento da vida em sociedade, o que põe em causa o carácter de subsidiariedade/ultima ratio do direito penal.

Pode contra-argumentar-se que o artigo 278º demonstra inequivocamente que o bem jurídico protegido de forma imediata e autónoma é o ambiente devido à enunciação expressa dos seus objectos de tutela, enquanto que o artigo 279º, uma vez que não prescinde, para que exista crime de poluição, da efectiva poluição da água, solos, ar ou som, tem também como objectivo a protecção ecológica.

Isto significa que apesar de não se poder prescindir da intervenção da Administração no sentido de fixar limites a partir dos quais os ditos danos serão inaceitáveis, o que os artigos protegem é o ambiente e não o respeito pelas prescrições administrativas em si próprias.

Na opinião do Professor Figueiredo Dias, deve adoptar-se um modelo combinatório - os crimes contra o ambiente deverão ser simultaneamente crimes de dever (de desobediência) e de resultado (eventualmente danoso), isto é, devem tomar como base uma conduta que actua lesivamente sobre um componente ambiental, mas que só é penalizada na medida em que um regulamento ou uma ordem emanados da Administraçao sejam infrigidos (sendo o artigo 278º um exemplo desta construção típica).

O problema é que se a tipicidade depende do crivo da contradição com normas ou ordens da Administração, que fornecem o critério da relevância típica, então o dano ambiental é determinado pela autoridade administrativa - se houver dano material elevado e mesmo assim se tiver respeitado o comando da Administração não haverá conduta típica; se pelo contrário houver dano pouco significativo ou objectivamente admissível mas associado a desobediência, o agente será punível à luz do disposto no art.279º, uma vez que esta norma incriminadora delimita a conduta típica através de uma actividade em si mesma considerada danosa.

Outra crítica que se faz a esta configuração dos crimes ecológicos como crimes de desobediência a prescrições administrativas, consiste em isso fazer deles normas penais em branco, dado que o preenchimento total do tipo legal de crime só pode ser feito por remissão para outras normas, neste caso sem dignidade penal.

Logo, não bastaria nunca a análise do disposto no artigo 278º e 279º, tendo ainda que se ter em conta o prescrito em normas de natureza administrativa, o que leva a suscitar a inconstitucionalidade destas normas penais em branco, numa dupla vertente: material, por um lado, por violar o princípio da legalidade na sua vertente de tipicidade; e por outro lado, há violação do artigo168º/1 c) da CRP (parece desrespeitar o princípio da reserva de lei, uma vez que não é nem a AR nem o Governo com autorização a definir o conteúdo da norma penal).

Pode contudo contra-argumentar-se que o artigo 278º é bastante determinado, fornecendo critérios para o preenchimento do conceito de “forma grave”; e que mesmo no que toca ao artigo 279º, a sua constitucionalidade é defensável, pois apesar da grande dependência das normas e actuações administrativa, dele resulta nitidamente qual o desvalor da acção proibida e do resultado lesivo, e é identificável o bem jurídico tutelado – o ambiente nos seus componentes naturais água, solos, ar e domínio do som.

O facto de os crimes ecológicos constituírem crimes de desobediência traduz-se na dependência destas incriminações penais perante o direito administrativo – assim, se o agente adoptar uma conduta danosa para o ambiente numa área em que a Administraçao ainda não emitiu quaisquer prescrições com preocupações ecológicas, não comete qualquer crime que se enquadre no artigo 278º ou 279º.

Há um certo número de lesões ambientais que têm que ser suportadas, em nome do progresso e do desenvolvimento económico, logo só pode caber às autoridades administrativas determinar os valores-limite a partir dos quais o dano para o ambiente é inadmissível.

Esta acessoriedade é relativa e não absoluta, uma vez que os crimes ecológicos não têm como objecto proteger o respeito pelas disposições da Administração, mas sim tutelar o bem jurídico concreto que é o ambiente.

Até chega a ser desejável esta convivência das incriminações penais com as prescrições administrativas, uma vez que concede maior segurança para os cidadãos.

Como a dependência face estas prescrições administrativas é de direito e não de acto, nunca relevará uma eventual tolerância ilícita da administração face ao comportamento danoso para o ambiente ou mesmo uma eventual actuação ao abrigo de uma autorização ou licença obtidas de modo ilegítimo.

A intervenção do Direito Penal só será legítima se for eficaz na protecção do bem jurídico, o que leva a não aceitar aquilo a que se tem chamado “direito penal simbólico, e que consiste na ideia de que a criação de crimes ecológicos não corresponderá a uma efectiva punição dos agentes poluidores, servindo apenas para sossegar consciências e desviar a atenção das medidas que politicamente deveriam ter sido tomadas mas que não foram por economicamente custosas, difíceis ou impopulares.

Ora, isto claramente contraria a função do Direito Penal de tutela de bens jurídicos – se há um intuito de intimidar pela imposição de penas que só virão a ser aplicadas em casos excepcionais, a finalidade de prevenção falhará, dado que a comunidade ao aperceber-se da não efectividade das normas que protegem o ambiente, deixará de acreditar na sua vigência, já para não dizer que se está a violar o princípio da dignidade da pessoa humana ao instrumentalizar-se pessoas, pondo-as a servir de exemplo e tratando-as de forma desigual.

Assim, a eficácia da intervenção penal na proteção do ambiente depende da efectiva punição das condutas proibidas e do conhecimento que a comunidade adquira da aplicação de penas a esses comportamentos.


A tutela do Ambiente pelo Direito de Mera Ordenação Social

O direito de mera ordenação social é o direito administrativo de natureza sancionatória, criado com o DL 433/82, especialmente vocacionado para a protecção do ambiente, pelo que há que reconhecer algumas especificidades das contra-ordenações ambientais e avaliar a eficácia daquele sistema normativo na protecção ecológica.

Tendo surgido na sequência de um movimento de descriminalização, e tanto pelo seu conteúdo como pela entidade competente para a sua aplicação, este Direito autonomizou-se qualitativamente do Direito Penal, (sendo-lhe reconhecidas especificidades dogmáticas, sancionatórias e processuais), embora ainda não se confunda com o Direito Administrativo.

Como a Administração tem um papel cada vez mais interveniente no âmbito de um Estado de Direito Social, tem caído na tentação de recorrer às penas do Direito Penal – sanções particularmente gravosas por permitirem uma privação da liberdade do individuo ou uma diminuição do seu património – para atingir os seus objectivos e como reforço das suas políticas.

Assiste-se assim a um enorme alargamento do âmbito do direito penal, começando a amontoar-se diplomas de legislação penal extravagante, sobretudo de carácter administrativo e de conteúdo económico-social.

O direito de mera ordenação social não é Direito Penal, nem o pretende ser, mas sim Direito Administrativo de carácter sancionatório.

O Professor Gomes Canotilho atribui-lhe três objectivos fundamentais:

- Retirar dos quadros do direito penal aquelas infracções que não possuem relevância ética;
- Guardar o conteúdo ético que vive nas sanções penais (que devem possuir especial relevância comunitária pela sua gravidade e aplicação apenas em casos de necessidade extrema) para comportamentos também eticamente relevantes;
- Permitir o aparecimento de sanções diversas das sanções penais (que só podem ser aplicadas por um tribunal) e atribuir aos agentes administrativos a faculdade de aplicar aquelas sanções.

O que se pretende com a criação do Direito das Contra-Ordenações é uma total autonomização do ilícito de mera ordenação social face ao ilícito penal, autonomia esta que se manifesta no plano dogmático, sancionatório e processual.

Isto significa que ou um dado comportamento é tao grave que possui dignidade penal e deve ser considerado um crime ou então constitui o mero desrespeito por uma injunção administrativa ligada à boa organização da vida social, devendo então ser configurado como contra-ordenação.

Passamos a expor algumas diferenças entre estes dois tipos de sanção, que justificam a sua autonomia uma em relação à outra:

Enquanto o crime diz respeito a condutas que a comunidade considera desvaliosas, independentemente da sua proibição legal, dado porem em causa bens jurídicos indispensáveis, a contra-ordenaçao diz respeito a condutas em si mesmas “neutras”, que só adquirirão relevo depois de a Administração as nomear como comportamentos a adoptar ou a evitar.

Enquanto que no Direito Penal não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa (Artigo 40º/2 do Código Penal), sendo esta entendida como “qualidade desvaliosa e censurável efectivamente existente no facto e/ou na pessoa do agente”, no direito das contra-ordenaçoes, pelo contrário, a culpa é entendida como “mera imputação do facto à responsabilidade social do seu autor”, concepção esta que facilita a punição do agente poluidor, uma vez que é bem menos restritiva que a configuração penal.

A coima é a sanção específica deste ilícito. Aliás, a sua previsão como sanção constitui o critério formal para que se qualifique uma conduta como contra-ordenação.

Distingue-se indubitavelmente da multa, quer quanto ao seu regime, quer quanto às suas finalidades – as finalidades da multa são unicamente preventivas, visando-se a tutela dos bens jurídicos e o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime por um lado e a reintegração social do agente por outro lado; as finalidades da coima entendem-se como uma mera advertência ao cidadão infractor, sendo estranhas a sentidos positivos de prevenção, nomeadamente de prevenção especial de (re) socialização, ao que acresce que se o agente condenado a uma pena de multa não pagar terá que cumprir uma pena de prisão (a menos que o não pagamento não lhe seja imputável) enquanto o não pagamento da coima nunca poderá implicar a prisão do faltoso, mas sim outras medidas como substituição por trabalho a favor da comunidade ou execução de bens.

Vemos que a contra-ordenação tem um carácter de censura puramente social, entendida como um aviso ao cidadão para que este passe a cumprir o seu dever de colaborar com a Administração na prática das suas funções.

Neste campo, a intervenção das associações de defesa do ambiente e de qualquer particular no processo é extremamente limitada – podem denunciar as actividades lesivas do ambiente, colaborar na preservação de provas e intervir como testemunhas, mas já não é possível constituírem-se assistentes nesta fase administrativa do processo, o que os impossibilita de impugnar as decisões administrativas que não sancionem a actividade poluidora (ou o façam de forma demasiado benevolente), pois o agente é o único com legitimidade para impugnar essa decisão administrativa.

Como grande parte das agressões ao ambiente têm a ver com a violação de normas preventivas em que não estão em causa propriamente valores indispensáveis para a subsistência da vida na comunidade, mas antes a perturbação da ordem social, está explicada a preferência do direito de mera ordenação social para o tratamento destas infracções, o que se encontra enunciado no artigo 47º/1 da Lei de Bases do Ambiente.

No que toca às características destas contra-ordenações, apesar de a regra ser que o agente só poderá ser punido pela sua prática quando agir com dolo, em sede de contra-ordenaçoes ambientais as condutas negligentes são normalmente punidas, assim como a mera tentativa – o agente que tenta causar danos ambientais, mesmo que não o consiga, é normalmente punido, ainda que de forma atenuada.

É fácil verificar o tratamento privilegiado que é conferido ao ambiente, pela transformação destas duas excepções em regra.

Uma outra característica consiste na previsão de diferentes sanções acessórias, aplicadas em conjunto com a sanção principal (que é a coima) e que revelam um intuito de reparar um prejuízo já verificado ou de evitar um dano ainda por ocorrer.

Para definir as condutas que constituem contra-ordenações ambientais, recorrem-se a técnicas pouco rígidas, tais como o recurso a cláusulas gerais; o entendimento de que consiste numa contra-ordenação a adopçao de determinados actos que contrariem licenças e autorizações; a sua descrição intensiva, por indicação dos seus elementos constitutivos; ou considerando como contra-ordenação o incumprimento por um determinado agente de uma imposição concreta e individual da Administração.

Daqui resultam nítidas vantagens no que toca à eficácia da intervenção do direito contra-ordenacional no domínio do ambiente, por contraposição às regras rígidas que vinculam o legislador penal na qualificação de uma conduta como criminosa.

Enquanto a tutela penal é essencialmente repressiva, e a tutela administrativa é por excelência preventiva, o ilícito de mera ordenação social parece ocupar uma posição intermédia – ainda que possa parecer exclusivamente repressivo, por se traduzir no conhecimento de um ilícito e na decisão da respectiva sanção, é possível apontar-lhe também uma natureza preventiva, entendida enquanto intuito de obstar a verificação de determinado dano, ideia esta que resulta da própria Lei de Bases do Ambiente, no seu artigo 3º.

A já referida punição como regra da tentativa e da negligência nas contra-ordenações ambientais, também indicia finalidades fortemente preventivas, dado que não se exige o desvalor do resultado para que haja punição, e impõe-se a observância de especiais deveres de cuidado na conduta a adoptar pelos agentes.

Até mesmo a noção de coima enquanto advertência ao cidadão que faltou ao dever de colaborar na prossecução dos interesses do Estado, indicia já uma conotação preventiva.

Convém ainda frisar que o montante desta coima não deve nunca situar-se abaixo do beneficio económico auferido pelo agente com a prática da infracção, para que sob o ponto de vista preventivo, deixe de ser útil ao agente poluidor fazer um cálculo dos custos e benefícios resultantes da prática de uma infracção.

Acresce que esta ideia de prevenção é também comprovada pela aplicação de sanções acessórias, para além da coima, que podem ser bem mais prejudiciais para o condenado do que aquela e que têm em regra uma função impeditiva de infracções futuras.

Também do ponto de vista processual, o facto de o conhecimento e sancionamento do ilícito ser atribuído às autoridades administrativas demonstra a clara intenção de estimular a proximidade entre estas e os eventuais infractores, com o objectivo de potenciar a celeridade e eficácia daquela intervenção, impedindo a verificação do ilícito ou pelo menos evitando males maiores.

CONCLUSÕES

Numa tentativa de resumir tudo o que foi exposto até agora, podemos concluir que tanto a adopção da via penal como da via contra-ordenacional para a tutela do ambiente, acarretam inúmeras vantagens e desvantagens.

O Professor Vasco Pereira da Silva faz uma enunciação das mesmas, que passamos a expor:

A escolha da via penal para a tutela do ambiente tem a seu favor a importância da existência de crimes ambientais, o que confere à defesa do ambiente uma maior “dignidade jurídica”; a maior intensidade da tutela ambiental, dando origem não apenas à aplicação de sanções pecuniárias como também a penas privativas da liberdade e por último, a existência das garantias do processo penal, como a “presunção de inocência” e a realização de um “justo julgamento” , dispostas nos artigos 27º a 32º CRP.

Contudo, podem indicar-se como inconvenientes a inadequação do Direito Penal para a tutela do ambiente, por se orientar sobretudo no sentido da repressão de comportamentos anti-juridicos graves, enquanto o direito do ambiente assenta num principio de prevenção; a existência no ilícito ambiental de inúmeras situações danosas provocadas pela actuação de pessoas colectivas, enquanto que no Direito Penal a imputação de responsabilidades é exclusivamente individual; o perigo de descaracterização e de subalternização do Direito Penal, uma vez que a maior parte dos crimes ambientais decorre da desobediência a injunções de autoridades administrativas, passando a ser a Administraçao a controlar o respeito pelas fronteiras do Direito Penal, colocando este numa situação de “acessoriedade administrativa”, transformando-o no braço direito da Administração e conferindo-lhe meras funções executivas relativamente às politicas tuteladas; e a ineficácia de um sistema sancionatório do ambiente de tipo penal pela dificuldade prática em apanhar e condenar os criminosos do ambiente, o que levaria a um défice da sua execução, também justificada pela hesitação dos juízes na aplicação de penas severas.

Por outro lado, a escolha da via contra-ordenacional para a tutela do ambiente tem como vantagens a maior celeridade e eficácia na punição do infractor ambiental, que decorre da maior simplicidade do procedimento administrativo em comparação com o judicial; permite a responsabilização não apenas dos indivíduos mas também das pessoas colectivas; garante a autonomia do Direito Penal que não necessita de estar mais submetido às estatuições das autoridades administrativas, ainda que implique a atribuição a estas do poder de punir.

Porém, contra esta orientação pode ainda invocar-se a diminuição efectiva da possibilidade de defesa dos particulares; a tendência para banalizar as actuações delituais em matéria de ambiente, remetidos para o universo das sanções pecuniárias, vistas como uma realidade de menor importância; a tendência para transformar a sanção pecuniária num mero custo da actividade económica poluente, que pode tornar lucrativo um delito ambiental mediante uma mera operação contabilística.

Posto isto, qual é então a solução?

A tutela penal do ambiente repercute-se na actividade administrativa tal como a tutela administrativa do ambiente interfere na Justiça Penal, solicitando a sua intervenção para se poder concretizar.

De acordo com a opinião do Professor Vasco Pereira da Silva, não se devem adoptar as orientações meramente exclusivistas quanto à tutela sancionatória do ambiente, que remetem tudo ou para o domínio do Direito Penal ou do Direto Contra-Ordenacional, devendo-se pelo contrário combinar de forma equilibrada as sanções penais com as sanções administrativas.

O professor também não acolhe a orientação sugerida pelo autor alemão Hassemer, uma espécie de “terceira via”, que consiste numa junção de todas as disposições dos outros ramos de direito (penal, fiscal, económico, etc.) que tenham uma relação directa com o direito ambiental, levando a reunir num ramo de direito autónomo todas as normas sancionatórias do Direito do Ambiente, sem que se venha a perceber qual a sua razão de ser, quais os fundamentos de unidade ou da autonomia desse pretenso ramo de direito, e muito menos qual a sua utilidade prática.

A Professora Maria Fernanda Palma, perante a questão de saber se o Direito de mera ordenaçao social é a solução mais idónea para as infracçoes anti-ambientais, admite que pelos meios sancionatórios que oferece e por não ser a culpa o seu critério predominante de fim e medida da sanção, mas antes a reparação do dano e a desmotivação do infractor, através do prejuízo pecuniário causado pela sanção, este ramo contém os mecanismos ideais relativamente a condutas anti-ambientais que não sejam imediatamente anti-humanas ou que sejam apenas remotamente perigosas para os bens jurídicos pessoais ou sociais, uma vez que a tutela penal do ambiente parece pressupor limites rigorosos, não podendo ultrapassar, legitimamente a evidente repercussão humana.

Também o Professor Gomes Canotilho refere o melhor posicionamento do direito de mera ordenação social para a tutela ambiental relativamente ao direito penal, o que não quer dizer que não caiba a este último também uma função de protecção do bem jurídico ambiente, mas a sua intervenção deve ser reservada a casos de particular gravidade e sempre com a preocupação que o regime previsto na lei penal possa ser eficaz sob o ponto de vista do bem jurídico a proteger.

Quanto a saber por qual modelo preferencial de tutela sancionatória do ambiente é que opta o nosso ordenamento jurídico, parece privilegiar-se a via administrativa, o que se retira tanto do limitado elenco de crimes ambientais como do facto de a maior parte dos delitos ambientais corresponderem a contra-ordenações, o que deve levar a reservar o Direito Penal do Ambiente para os casos mais graves de comportamentos anti-jurídicos lesivos do ambiente.

Contudo, como já vimos que há vários inconvenientes resultantes da tutela contra-ordenacional, afigura-se necessário evitar ou pelo menos minimizar a sua verificação, através da valorização de direitos dos particulares (como o direito de audiência e de defesa, de acompanhamento por advogado ou defensor e de recurso das decisões); da possibilidade de aplicar sanções acessórias para lá das coimas (de maneira a evitar a depreciação da importância do ilícito contra-ordenacional, reduzido a simples dimensão pecuniária); e da procura de que o pagamento das coimas não seja a alternativa economicamente mais rentável, vistas como “custos de produção” , o que se consegue com uma punição contra-ordenacional adequada e “exemplar”, ainda que sem esquecer o princípio da proporcionalidade.

Conclui-se então que a via mais indicada para a tutela sancionatória do ambiente consiste em criminalizar as condutas mais graves, (uma vez que a defesa do ambiente pertence aos valores fundamentais da nossa sociedade e interliga-se com a realização da dignidade da pessoa humana), mas sem que isso implique uma banalização do direito penal do ambiente, pois o modo mais “natural” de reagir contra delitos ambientais é através das contra-ordenações.

Esta solução adoptada pelo ordenamento português de conjugar a tutela penal com a contra-ordenacional do ambiente, dando-se preferência à segunda, permite conjugar as vantagens e contornar os inconvenientes dos modelos exclusivistas, abrindo caminho para uma reacção sancionatória plena, adequada e efectiva da ordem jurídica contra comportamentos delituosos lesivos do ambiente.



Bibliografia:

  • José Gomes Canotilho, "Introdução ao Direito do Ambiente"
  • Maria Fernanda Palma, “Direito Penal do Ambiente – Uma Primeira Abordagem”
  • Vasco Pereira da Silva, “Verde, cor do Direito”





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