A Creeping Jurisdiction
dos Tribunais Administrativos
Por: Alexandre Antunes dos Santos
É um problema de jurisdição sobre o espaço marítimo: Creeping jurisdiction, trata-se de um fenómeno
que tem vindo a dar-se desde a década de 90 do seculo XX, no âmbito do Direito Marítimo,
que consiste na reivindicação unilateral de poderes de jurisdição dos Estados, para
além da sua ZEE (Zona Económica Exclusiva), invocando um interesse especial na
captura de espécies de peixes transzonais.
O Professor Marques Guedes atribui a este fenómeno, a
causa da extinção da aplicação do Estatuto do Alto Mar às áreas que não correspondam
à camada aérea e à superfície e espessura das águas delimitadas pelo plano vertical
que passa pelo rebordo externo do Mar Territorial – a superfície, a espessura
das águas, o leito e o subsolo sob as zonas contiguas, nas aéras das
plataformas continentais, etc.
Segundo as suas palavras: “lento resvalar para a sujeição
à jurisdição nacional” do alto mar, que tradicionalmente pertenceria ao Direito
Internacional.
O novo artigo 4º, nº1 do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (ETAF, doravante) pode então, representar um exemplo
de alargamento do âmbito da jurisdição administrativa, em relação ao anterior
artigo 4º e ao artigo 212º nº3 da Constituição da Republica Portuguesa (CRP,
doravante).
O mais preocupante neste alargamento excessivo é a
extensão dos poderes de julgamento dos Tribunais Administrativos a litígios que
envolvam a discussão de relações jurídico-privadas. Apontando o critério da
relação jurídica administrativa, no artigo 212º nº3 da CRP, como critério delimitador
do âmbito da reserva de atribuições jurisdicionais, o legislador constitucional
quis abranger toda a atividade de uma função estadual – a função administrativa
– independentemente dos meios utilizados.
A conformidade constitucional de uma legislação
processual ordinária que faça da jurisdição administrativa a comum para litígios
emergentes de relações jurídico-públicas, só será possível se se verificar o
fim de realização de um interesse público, constitucional e/ou legalmente
reconhecido. Daí que se questiona a conformidade constitucional de algumas alíneas
do novo artigo 4º nº1 do ETAF, nomeadamente quando o tribunal é chamado para
apreciar questões d direito privado, sem qualquer fim público.
As entidades públicas ou as privadas associadas ao
desenvolvimento de tarefas públicas também podem desenvolver acessoriamente atividades
de fins privados, que naturalmente não serão incluídas no âmbito da jurisdição
administrativa.
No entanto, nem todas as relações jurídico-administrativas
são apreciadas pelos tribunais administrativos, excluídos por razões práticas
como é o exemplo das coimas.
Podemos então concluir que o critério de relação jurídica
administrativa, ao abrigo do artigo 213º nº3 da CRP, atrai à jurisdição
administrativa questões que, independentemente do ramo de Direito, envolvem
ação ou omissão que traduzem a prossecução de objetivos de interesse publico,
constitucional e/ou legalmente enunciados e não consubstanciam formas típicas do
exercício de outra função do Estado, que não a administrativa.
O sentido e alcance da alinha l) do nº1 do artigo 4º do
ETAF devem ser determinados com referencia ao novo artigo 45º da Lei de Bases
do Ambiente (LBA, doravante).
A competência para apreciação das ações interpostas por
actores populares, na defesa de bens ambientais estava pré-condicionada pela determinação
do anterior artigo 45º que reconduzia todo o contencioso ambiental, preventivo
e ressarcitório, à jurisdição comum.
Com o surgimento do novo artigo 45º, aceitou-se que a
proteção do ambiente se possa fazer pelas vias jurisdicionais publicas, através
da remição para os conceitos distintos de atividade de gestão privada e de
gestão pública, como determinantes da jurisdição competente no litígio.
A alinha b) do artigo 4º nº1 do ETAF coloca sob a alçada
do tribunal administrativo um vasto conjunto de situações, sujeitas à captação
pela jurisdição comum, tais como as atividades potencialmente lesivas do
ambiente, desenvolvidas ao abrigo de uma autorização administrativa, cuja
legalidade se contenda diretamente.
A possibilidade de cumulação de pedidos, admitida nos
termos do artigo 4º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA,
doravante), concorre para que a apreciação da validade da autorização deva ser
feita pelos tribunais administrativos, na medida em que, nas situações em que haja
danos diretamente decorrentes do exercício da atividade autorizada, cabe apurar
se devem ser imputados apenas ao lesante, apenas à Administração ou a ambos.
A alinha b) do artigo 4º nº1 do ETAF, aplica-se quera
autorização seja concedida a sujeitos privados, quer a sujeitos de natureza
publica, cuja atividade seja potencial ou efetivamente lesiva do ambiente.
Concretiza-se a relação jurídica administrativa através do
ato autorizativo e este, expressão de um dever de proteção de um bem de interesse
publico, atrai todos os aspetos do litigio, excepto se a questão sub judice for independente da existência
de autorização ou porque prévia ou porque alheia a esta.
Logo em regra, a existência de um ato autorizativo leva a
que a resolução do litigio, seja feita pela jurisdição administrativa, ainda
que a questão principal, não configure, pelo menos diretamente, uma relação
jurídica administrativa – este fenómeno denomina-se atração legitima, pois
potencia a celeridade e efectividade de tutela jurisdicional do autor, não prejudicando
os direitos de defesa da contraparte.
A alinha l) do nº1 do artigo 4º do ETAF vem complementar a
tutela ambiental já promovida pela alinha b) do mesmo numero. Apenas acrescenta
a possibilidade de apreciação de questões que envolvam a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens
constitucionalmente protegidos em matéria de ambiente, quando cometidas por
entidades publicas – sempre que
desenvolvidas a descoberto de qualquer autorização administrativa.
As violações referidas podem traduzir-se quer em ações,
quer em omissões.
A alínea l) parece excluir da jurisdição administrativa,
as iniciativas processuais tomadas por autores com legitimidade popular (artigo
9º nº2 do CPTA), pois circunscreve-se às violações levadas a cabo por entidades
públicas. Contudo, fazer prevalecer a alínea l) sobre a alínea b), nas hipóteses
de sindicância de uma autorização administrativa, seria afrontar o núcleo mínimo
de proteção do artigo 212º nº3 da CRP, sem quaisquer razões históricas ou
praticas que justifiquem a distinção entre autores investidos em legitimidade
popular e autores com legitimidade singular.
A impugnação jurisdicional de atos autorizativos
titulados por privados, por sujeitos investidos em legitimidade popular, é da competência
dos tribunais administrativos.
A situação excluída da jurisdição administrativa pela alínea
l) é a de prevenção, cessação e reparação levada a cabo por privados que não represente
o exercício de funções materialmente administrativas. Tal não significa que
fiquem carentes de tutela jurisdicional, já que serão abrangidas pelos
tribunais comuns. Esta situação não estaria em desconformidade com a CRP.
A atuação dos privados, por estar desconectada de
qualquer tutela material administrativa, fica destituída da colaboração jurídico-pública
justificativa da apreciação por parte dos tribunais administrativos.
Todas as iniciativas processuais populares, associativas
e públicas dirigidas à salvaguarda de bens naturais, desenrolar-se-ão junto da
jurisdição administrativa.
Concluindo, o artigo 4º do ETAF introduziu modificações
substanciais no âmbito da jurisdição administrativa. Certas cláusulas devem ser
ponderadas e a sua aplicação deve ser contida, nomeadamente as alíneas h) e i);
outras cláusulas convidam à reformulação, como a alínea l).
A absorção de todo o contencioso ambiental é uma evolução
logica e coerente do sistema. A única razão que pode impedir essa evolução
pertence ao foro prático, mas perante o vasto conjunto de situações sob a égide
da jurisdição administrativa (alíneas b) e l) do artigo 4º nº1 do ETAF), é difícil
sustentar esse argumento.
Finalmente, a revogação substitutiva do artigo 45º da LBA
e a afirmação da competência dos tribunais administrativos no que toca às ações
populares (artigos 9º nº2 do CPTA e 4º nº1 alínea l) do ETAF) são um exemplo de
creeping jurisdiction no domínio ambiental.
Apenas se lamenta que o legislador não tenha aproveitado a oportunidade de dar ‘ainda
mais largas’ à jurisdição administrativa, acolhendo as iniciativas populares
dirigidas à tutela de bens de interesse coletivo, numa atitude de coerência legislativa
e constitucionalmente desejável.
Bibliografia:
·
ALMEIDA,
Mário Aroso de, Tutela jurisdicional em
matéria ambiental, in Estudos de direito do ambiente, Porto, Coimbra
Editora, 2003.
·
CALVÃO,
Filipa Urbano, Direito ao ambiente e
tutela processual das relações de vizinhança, in Estudos de Direito do
Ambiente, Porto, UCP-Porto, 2003
·
GOMES, Carla Amado, O Artigo
4.º do ETAF: Um Exemplo de Creeping Jurisdiction?: Especial (Mas Brevíssima) Nota Sobre o Artigo
4.º/1/l) do ETAF, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Armando M. Marques Guedes, Coimbra, Coimbra
Editora, Set./2004
·
GUEDES,
Armando Marques, Direito do Mar, 2ª
edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1998
Sem comentários:
Enviar um comentário