quinta-feira, 24 de maio de 2012

A Creeping Jurisdiction dos Tribunais Administrativos



A Creeping Jurisdiction dos Tribunais Administrativos


Por: Alexandre Antunes dos Santos


É um problema de jurisdição sobre o espaço marítimo: Creeping jurisdiction, trata-se de um fenómeno que tem vindo a dar-se desde a década de 90 do seculo XX, no âmbito do Direito Marítimo, que consiste na reivindicação unilateral de poderes de jurisdição dos Estados, para além da sua ZEE (Zona Económica Exclusiva), invocando um interesse especial na captura de espécies de peixes transzonais.
O Professor Marques Guedes atribui a este fenómeno, a causa da extinção da aplicação do Estatuto do Alto Mar às áreas que não correspondam à camada aérea e à superfície e espessura das águas delimitadas pelo plano vertical que passa pelo rebordo externo do Mar Territorial – a superfície, a espessura das águas, o leito e o subsolo sob as zonas contiguas, nas aéras das plataformas continentais, etc.
Segundo as suas palavras: “lento resvalar para a sujeição à jurisdição nacional” do alto mar, que tradicionalmente pertenceria ao Direito Internacional.
O novo artigo 4º, nº1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, doravante) pode então, representar um exemplo de alargamento do âmbito da jurisdição administrativa, em relação ao anterior artigo 4º e ao artigo 212º nº3 da Constituição da Republica Portuguesa (CRP, doravante).
O mais preocupante neste alargamento excessivo é a extensão dos poderes de julgamento dos Tribunais Administrativos a litígios que envolvam a discussão de relações jurídico-privadas. Apontando o critério da relação jurídica administrativa, no artigo 212º nº3 da CRP, como critério delimitador do âmbito da reserva de atribuições jurisdicionais, o legislador constitucional quis abranger toda a atividade de uma função estadual – a função administrativa – independentemente dos meios utilizados.
A conformidade constitucional de uma legislação processual ordinária que faça da jurisdição administrativa a comum para litígios emergentes de relações jurídico-públicas, só será possível se se verificar o fim de realização de um interesse público, constitucional e/ou legalmente reconhecido. Daí que se questiona a conformidade constitucional de algumas alíneas do novo artigo 4º nº1 do ETAF, nomeadamente quando o tribunal é chamado para apreciar questões d direito privado, sem qualquer fim público.
As entidades públicas ou as privadas associadas ao desenvolvimento de tarefas públicas também podem desenvolver acessoriamente atividades de fins privados, que naturalmente não serão incluídas no âmbito da jurisdição administrativa.
No entanto, nem todas as relações jurídico-administrativas são apreciadas pelos tribunais administrativos, excluídos por razões práticas como é o exemplo das coimas.
Podemos então concluir que o critério de relação jurídica administrativa, ao abrigo do artigo 213º nº3 da CRP, atrai à jurisdição administrativa questões que, independentemente do ramo de Direito, envolvem ação ou omissão que traduzem a prossecução de objetivos de interesse publico, constitucional e/ou legalmente enunciados e não consubstanciam formas típicas do exercício de outra função do Estado, que não a administrativa.
O sentido e alcance da alinha l) do nº1 do artigo 4º do ETAF devem ser determinados com referencia ao novo artigo 45º da Lei de Bases do Ambiente (LBA, doravante).
A competência para apreciação das ações interpostas por actores populares, na defesa de bens ambientais estava pré-condicionada pela determinação do anterior artigo 45º que reconduzia todo o contencioso ambiental, preventivo e ressarcitório, à jurisdição comum.
Com o surgimento do novo artigo 45º, aceitou-se que a proteção do ambiente se possa fazer pelas vias jurisdicionais publicas, através da remição para os conceitos distintos de atividade de gestão privada e de gestão pública, como determinantes da jurisdição competente no litígio.
A alinha b) do artigo 4º nº1 do ETAF coloca sob a alçada do tribunal administrativo um vasto conjunto de situações, sujeitas à captação pela jurisdição comum, tais como as atividades potencialmente lesivas do ambiente, desenvolvidas ao abrigo de uma autorização administrativa, cuja legalidade se contenda diretamente.
A possibilidade de cumulação de pedidos, admitida nos termos do artigo 4º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA, doravante), concorre para que a apreciação da validade da autorização deva ser feita pelos tribunais administrativos, na medida em que, nas situações em que haja danos diretamente decorrentes do exercício da atividade autorizada, cabe apurar se devem ser imputados apenas ao lesante, apenas à Administração ou a ambos.
A alinha b) do artigo 4º nº1 do ETAF, aplica-se quera autorização seja concedida a sujeitos privados, quer a sujeitos de natureza publica, cuja atividade seja potencial ou efetivamente lesiva do ambiente.
Concretiza-se a relação jurídica administrativa através do ato autorizativo e este, expressão de um dever de proteção de um bem de interesse publico, atrai todos os aspetos do litigio, excepto se a questão sub judice for independente da existência de autorização ou porque prévia ou porque alheia a esta.
Logo em regra, a existência de um ato autorizativo leva a que a resolução do litigio, seja feita pela jurisdição administrativa, ainda que a questão principal, não configure, pelo menos diretamente, uma relação jurídica administrativa – este fenómeno denomina-se atração legitima, pois potencia a celeridade e efectividade de tutela jurisdicional do autor, não prejudicando os direitos de defesa da contraparte.
A alinha l) do nº1 do artigo 4º do ETAF vem complementar a tutela ambiental já promovida pela alinha b) do mesmo numero. Apenas acrescenta a possibilidade de apreciação de questões que envolvam a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos em matéria de ambiente, quando cometidas por entidades publicassempre que desenvolvidas a descoberto de qualquer autorização administrativa.
As violações referidas podem traduzir-se quer em ações, quer em omissões.
A alínea l) parece excluir da jurisdição administrativa, as iniciativas processuais tomadas por autores com legitimidade popular (artigo 9º nº2 do CPTA), pois circunscreve-se às violações levadas a cabo por entidades públicas. Contudo, fazer prevalecer a alínea l) sobre a alínea b), nas hipóteses de sindicância de uma autorização administrativa, seria afrontar o núcleo mínimo de proteção do artigo 212º nº3 da CRP, sem quaisquer razões históricas ou praticas que justifiquem a distinção entre autores investidos em legitimidade popular e autores com legitimidade singular.
A impugnação jurisdicional de atos autorizativos titulados por privados, por sujeitos investidos em legitimidade popular, é da competência dos tribunais administrativos.
A situação excluída da jurisdição administrativa pela alínea l) é a de prevenção, cessação e reparação levada a cabo por privados que não represente o exercício de funções materialmente administrativas. Tal não significa que fiquem carentes de tutela jurisdicional, já que serão abrangidas pelos tribunais comuns. Esta situação não estaria em desconformidade com a CRP.
A atuação dos privados, por estar desconectada de qualquer tutela material administrativa, fica destituída da colaboração jurídico-pública justificativa da apreciação por parte dos tribunais administrativos.
Todas as iniciativas processuais populares, associativas e públicas dirigidas à salvaguarda de bens naturais, desenrolar-se-ão junto da jurisdição administrativa.
Concluindo, o artigo 4º do ETAF introduziu modificações substanciais no âmbito da jurisdição administrativa. Certas cláusulas devem ser ponderadas e a sua aplicação deve ser contida, nomeadamente as alíneas h) e i); outras cláusulas convidam à reformulação, como a alínea l).
A absorção de todo o contencioso ambiental é uma evolução logica e coerente do sistema. A única razão que pode impedir essa evolução pertence ao foro prático, mas perante o vasto conjunto de situações sob a égide da jurisdição administrativa (alíneas b) e l) do artigo 4º nº1 do ETAF), é difícil sustentar esse argumento.
Finalmente, a revogação substitutiva do artigo 45º da LBA e a afirmação da competência dos tribunais administrativos no que toca às ações populares (artigos 9º nº2 do CPTA e 4º nº1 alínea l) do ETAF) são um exemplo de creeping jurisdiction no domínio ambiental. Apenas se lamenta que o legislador não tenha aproveitado a oportunidade de dar ‘ainda mais largas’ à jurisdição administrativa, acolhendo as iniciativas populares dirigidas à tutela de bens de interesse coletivo, numa atitude de coerência legislativa e constitucionalmente desejável.

Bibliografia:
·         ALMEIDA, Mário Aroso de, Tutela jurisdicional em matéria ambiental, in Estudos de direito do ambiente, Porto, Coimbra Editora, 2003.
·         CALVÃO, Filipa Urbano, Direito ao ambiente e tutela processual das relações de vizinhança, in Estudos de Direito do Ambiente, Porto, UCP-Porto, 2003
·         GOMES, Carla Amado, O Artigo 4.º do ETAF: Um Exemplo de Creeping Jurisdiction?: Especial (Mas Brevíssima) Nota Sobre o Artigo 4.º/1/l) do ETAF, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Coimbra, Coimbra Editora, Set./2004
·         GUEDES, Armando Marques, Direito do Mar, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1998

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